Opinião

MUNDO DE PRINCESAS X/XV

DEZ

 Na entrada do centro de acolhimento da outra agremiação, a dos pais e amigos do cidadão diminuído mental, de que também se fizera membro societário, localizada a poente da cidade e a caminho do mar, grémio com propósitos igualmente inclusivos à imagem da associação dos familiares e amigos de outras perturbações, também espirituais, que reunia na sexta à noite no lado oposto e a nascente, agora na junta de freguesia como foi a seu tempo dito, António lia e relia a legenda outra vez antes de entrar no átrio que dá acesso aos gabinetes administrativos e mais salas onde se recebem os incumbidos da educação de tão diminuídas criaturas.

Aqui não temos dúvidas, é o setor dos diminuídos, oficialmente assinalados, assim tão bem escrito ninguém esquece as mentes apoucadas da normal e funcional clareza, distintamente encolhidas pelo soberano conceito da normalidade, inocentadas pela verdade dos novos usos e costumes, modernas normas definidas pela mais avançada jurisprudência. Haja paciência, disse a voz interior de António: e se em vez de diminuídos os apelidássemos de mensageiros especiais, divindades do aquém, com necessidades a satisfazer num ensino deveras inclusivo, universal e gratuito, para que servem os meus impostos, e com centros de acolhimento como este.

Longe vai a era dos doentinhos na letra da lei e, no entanto, este patente e oficial atraso mental é o nome mais recente e aclimatado do perseverante batismo clínico, ao menos enquanto se não inventam novas terminologias, sempre aquiescidas com o saber e o gosto do tempo novo, sempre novo e em estado de renovação, em obediência a uma lógica pouco observável mas autêntica, e num crescendo solidário como se pode ver, neste mundo humanisticamente estruturado, quais abas de um saco grande e geral, atraso mental reafirmemos sempre que se desconhecem as razões, ou se estas forem imponderáveis, tudo em conjunto no histórico dos diagnósticos, do primeiro ao derradeiro, façam o favor de desculpar, quem espera tem sempre razão, diz a obediência britânica. Acabara de chegar a equipa acolhedora dos encarregados de educação. Atrasados ou diminuídos tanto se lhes dá. Onde aprendeu Catarina a letra da felicidade: quiçá na música, voltou a murmurar em silêncio, nada há a desculpar, ora essa, disse a voz audível.

Nada a desculpar, e isso de reuniões e escrupulosos cumprimentos é falsidade de anglo-saxões desocupados e mandões: sabem mandar, obediência esperam das pobres nações, disse o histórico poeta guerra junqueiro no teatro pátria, mas este é o meu modo de pensar, a Catarina continua no nosso e vosso dela mundo encantado, atrevo-me a perguntar.

Vem outra vez o verão meu querido pai a reunião com a família meu marido meu amigo é muito normal e não vai demorar a dona Madalena também veio hoje nem era preciso este ano vou outra vez contigo para a cidade pequena quero muito brincar a mamã está combinada comigo é só entrar no carro eu sou uma criança grande, pediu desculpas pela pontuação ausentada. A pontuação não se ausentou, tu é que estás prestes a te ausentar meu amor lindo, tu é que vais ficar ausente da escolinha por mais de trinta dias, és uma sortuda, e nós temos muito orgulho em ti, princesa, estamos todos combinados não é Maria de Magdala.

Depois do verão, vamos todos ao hospital, podes escrever na tua agenda nova que aqui trago, sim meu querido eu vou escrever na agenda toda tudo vou até desenhar o mar os peixes as pessoas a passar as cadelas e os cães não podem ladrar já está no calendário o dia um de setembro às dez horas na sala das sessões das terapias familiares, agora vem um ponto final parágrafo.

As pessoas não deviam morrer não devia haver mais guerras nem pessoas a fazer mal a outras que também são pessoas nem mesmo aos animais não devia haver sonhos ruins nem alguns podiam inventar a maldade a guerra serve para matar e eu até desligo a televisão pra não ver meninos a sofrer nem fome devia haver que o sol quando nasce é para todos dois pontos: eu quero ir nas sessões das terapias.

Quer a sua princesa dizer fisioterapia ou há verdade nas palavras que dizem sessões de terapia, ela tem falado muito da família toda nuclear, está entusiasmada, terapia do corpo ou mental senhor António.

De saúde mental é o que carecemos todos, a Catarina está certa e ajuizada, do corpo estamos desentortados, sem mais precisão que uns bons caldos de galinha para evitar as gripes de verão que não fazem mal a ninguém, os caldos, é claro. É isso, e os cuidados, façam favor de se sentar.

A direção manda informar que se tenha presente toda a situação familiar, no próximo ano, porém, a Catarina não pode beneficiar dos apoios, que não pensem que estamos a cortar na oferta dos direitos: a piscina, o ténis e os cavalos têm de ser pagos à parte, o orçamento da instituição anda muito a encolher, e, como sabem, os que mais ganham são os que mais pagam para a segurança social, assim deveria ser, mandou dizer a direção, eu só replico as ordens procedidas de quem manda, tecnicamente bem seguradas.

Concordando com tudo, como de costume, fica a princesa matriculada sem quaisquer acrescentos de burocracia, está tudo informatizado é só enviar por email a declaração fiscal. A burocracia são os excrementos da civilização, pensou numa resposta mais civilizada.

É a normalização do atraso, ou o atraso da normalização, desculpem estava a pensar na placa da entrada e saiu-me a voz e a fala, compreendo a direção da associação e do país, mas quero aquela audiência prometida pela diretora desta meritória congregação de pais e amigos, de cidadãos diminuídos, nada de preocupações estimada assistente, estamos todos em estado de emergência, a civilização atrasou-se nos costumes e as tradições vão-se transmitindo em suporte digital. A ver se chegamos todos a bom porto.

Não leve em conta o desespero conjuntural, o privilégio de uns é o verso da carência de milhões no país e no mundo: na dobragem dos séculos e mais ainda dos milénios costumam-se faturar desgraças. Eu só conheço as do passado e mal vejo as do presente: o tempo não me dá tempo de parar e de pensar, ele são reuniões e encontros, conversas e complicações em forma de relatórios, tudo para atrapalhar, a tecnologia ajudou e muito está a escravizar. As reuniões dos utentes aqui são animadas e festivas, solidárias e coroadas de amor, eu posso pagar, cristalinos aqui estão os trabalhos de verdade: pode verificar.

Vem à fala a psicóloga e pouca coisa parlava para que ninguém se ofendesse: este tipo de crianças, estas nossas crianças são assim, umas vezes muito bem, outras menos muito bem, às vezes choram outras vezes riem, como as pessoas normais; à sua maneira, continuou, são até normais, gostam de brincar, e quem não gosta de brincar, têm tiques de comunicação, é tudo complicação, trejeitos de tanto esforço que fazem para nos imitarem, aos grandes de verdade que somos nós pais e amigos, nós também somos diminuídos mas ninguém sabe, no concreto e no senso figurado. Nasceram com outros problemas, repetiu-se, diminuídos, mas não tolos, tolos somos nós e não sabemos, felizes e inocentes porque os queremos aqui felizes e com as nossas regras apropriadas à situação de cada um.

O conforto foi aquecendo a alma e todos concordaram que julho é o mês mais intenso de verão.

A sua filha é das mais queridas, pudera, filha de quem é, quem sai aos seus não degenera, não é Catarina, que conheço bem, e eu sou cuidadora só este ano de duzentas e cinquenta, apenas suplica uma irmã mais aturada, uma família mais normal se considerarmos o que vai dizendo na linguagem dela pouco clara, não sei se a palavra normal aqui é pesada. A Catarina é tão feliz, seguiu-se uma pausa, falhou a respiração, houve um suspiro pesado e fundo, mas impercetível como se fora um simples poema humedecido pelo olhar brando e ofegante.

Mas a minha família é normal, escondeu lucidamente o sol com a peneira, não é disfuncional, mentiu de si para si e para todos os presentes, no pouco tempo que temos reside a anormalidade, fechou.

Uma família normal, mas isso não pode ser. Ela vive aflita e reporta aflições mencionando ser certo que nunca viu o jogo do come-deita-fora-come-deita-fora e logo lhe acudimos com pinturas e desenhos, barros, colagens e plasticinas, e língua portuguesa de que tanto gosta, sabem, a Catarina continua a gostar muito de escrever ditados, composições, cartas, e pergunta por provérbios e ditos de que se encanta, e não desiste de aperfeiçoar a caligrafia, fala sempre das cartas semanais que tem em casa e nunca trás, nunca uma para mostrar. E escreve direito por linhas revezadas, é ajuizada, tiveram muita sorte: meiga, afetuosa, deve ter um bom ambiente familiar, isso conta muito; ela gosta muito do pai, adora a mãe, mas a irmã anda-lhe turvada no coração há anos, que tanto ama, de que tanto quer a recuperação.

Suspeitamos que ambas queriam outra irmã, e que a família sempre quer a perfeita que não tem, mas não vamos filosofar.

Nos recantos da almazita e nas veias do seu enorme coração corre imparável o amor e a bondade, acrescentou o pai, concordou a mãe lambidos de orgulho.

Beijemos e abracemos as senhoras doutoras, princesa a primeira, enquanto os afetos são permitidos e vamos desancorar, daqui a nada estamos na casa pequena, a Catarina vai brincar, é julho outra vez e o mundo não pode parar.

São rosas senhores são rosas. Frescas algas deste oceano revoltado, vermelhas. Ecos do mundo, a este negrume escaldado de rumores, insinuante, o constante ruído dos deuses da nossa civilização oceânica, golfadas de sal no esófago antes de embater no estômago e deslizar rins abaixo até ao princípio e fim do corpo e do mar, outra vez o doce mar. Aqui nos tens. Estás a falar sozinho meu pai meu marido meu tudo, pega em mim e levanta-me ao mar, oh, ai que riso, ao ar, eu queria dizer ao ar.

Ouvem-se aqui vindos do longe os sons deles, os ruídos dos deuses incham-nos de uma espiritualidade moderna, laica, urbana: o zumbido deles anda a matar-nos desde o dia em que lhes demos eterno nascimento. Afrodite nasceu no mar para ser amor de sal, o doce da guerra, que prevaleceu nas terras de helena, ficou para ficar: das cavernas às galáxias que habitam imaginações. Os antigos a tudo deram nome de divindades para nós outros acreditarmos dizendo mitologias onde há verdades e deuses onde habitam imposturas: no lugar do norte está o desnorte montado.

O mundo é um palco do teatro da vida: pacífico atlântico índico, aquático sem bocas de cena sem guerras e sem hipocrisia. Não saias do sonho meu pai outra vez a mergulhar: tudo se vai arranjar.

Das civilizações enterradas conhecem-se pegadas, os signos do que estivéramos sendo antes do verbo eram já poemas e guerras em permanente construção: o teu pedaço de terra, o meu quinhão, a tua sede, o meu perdão, a grandeza da multiplicação, a diáspora errante. Os sítios de inesperados acolhimentos: vazios de tudo: cheios de pranto. Inteiros de espanto.

Para quê António, tanta errância de pensamento, a princesa quer brincar.

Não que sejam irreligiosos os maus odores de deus, mas porque no galgar dos horizontes se deixam corromper os homens que querem igualar as celestes altitudes: fama e glória, sobretudo milhões, a virgem deu um menino de deus para que os mais fortes continuassem a oprimir os mais justos, injustiça que vem de longe, antes da virgindade perdida, com ideologias que negam as ideias e matam a ação. Um homem frente ao mar é obrigado a pensar.

O dilúvio foi demais e o inverno não para e o fogo é excessivo, o verão inextinguível, dá a ordem de novas invenções: a vacina que cuide os homens de vez e nela, e com ela, a natureza, o próprio deus que tudo fez: uma vacina de humanidade geral: depois o descanso eterno.

Diferentemente do grande som, uno, universal, que faz a sua especial rebentação a seguir ao espalhafato do relâmpago, com nuvens gordas e carregadas para arrepiar as almas viventes e danadas, com chuva grossa e comprida para dar ao eco das religiões um odor mais místico, mais precioso, mais incolor, mais fedorento. E, no entanto, milhões de homens e mulheres bebem daquela taça todo aquele arroubamento, toda aquela indecente incorrupção de deus. Santa bárbara, barbaridade cósmica: eu não tenho medo de morrer, só tenho medo que o interruptor da vida faça doer, disse a poeta. Disse a minha mãe.

António temia pela vida naquele tempo rural, agarrado a um pinheiro da encosta, não fosse o vento ciclónico atirá-lo para o outro lado da vida, rezou, chorou, voltou ao caminho e amaldiçoou a trilha predita na partida: vou à casa do povo pelo caminho mais comprido, pintar com os olhos a paisagem dos pinheiros bravos e mansos, dos carvalhos e acácias, do musgo rasteiro abrigado do sol e a beber-lhe o oiro: a paisagem não se descreve, sente-se o saibro quase amarelo da estrada contados a passos de aflição, hoje, a meteorologia não avisou, rapaz, ainda em idade de tó.

Amanhã casarás, chamar-te-ão António e tu cumprirás o teu destino de laura a dona, se quiseres farás filhos como araújo o compositor. Miguel o crente, ou como azambujo, outro esmerado cantador, têm de crescer, porém, antes do concerto nos coliseus. António.

A cidade te aguarda, lugar de cultos negados, apoteose de liberdades e de bendições. O mundo é todo teu, tu que ainda és tó e recusas a laura que há em ti.

São os homens e as mulheres, e não só, que lhe sorvem o perfume, num rito agora urbano e de mares nunca antes navegados, com perdão do poeta escultor das palavras, como se de cada um imanasse uma deliciosa brisa, intensa e cheirosa, um cheiro a algas vermelhas, a rosas verdes, e, assim, neste preciso momento, rosnava o cão perdido nas bermas da praia, com as dianteiras estendidas sobre a já areia e as traseiras firmes no lajedo ainda da terra firme, pronto a fugir no caso de mais uma vez ser sacudido pela bondade e solidariedade humanas. Era doutra condição, sabia-o o cão, e por tanto o saber ia-se defendendo de todos, a não ser que este desgraçado com cara de António me deite a mão e me leve a passear, assim, como à pequena Catarina.

Até a miúda reparou: meu querido António, aquele cão de preto e branco não faz mal, pois não, não, claro que não, nem todos os cães mordem, alguns nem ladram, pois, assim é que eu gosto dos cães, é como as pessoas, faz de conta pai, mas as pessoas podem falar, e eu quero. E nós não ladramos, falamos, tens a certeza, tenho filha querida.

O cão pintalgado de negro e branco esborrifava piedade e calor humanos, ou implorava-os numa inequívoca sublimação da cidadania perdida. Era óbvio, se se reparasse bem no seu olhar de solidão, de desconforto. Buscava com urgência um novo dono, o antigo que fosse às urtigas. Ou ser simplesmente um sem dono e sem nome.

Julgar-se-á que é cão que não reconhece o dono. Todos temos direito a um dono, mas ninguém é obrigado a ter um dono, ele há servos bem o sei, ninguém devia ser obrigado a sê-lo, continuava o bichano no seu rosnar, na linguagem de um pensamento próprio e seu. Sejam quais forem as razões escondidas, que davam uma boa tese de doutoramento canino, logicamente na universidade da nova condi cão humana, a verdade é que aquele cão mostrava ser vadio de há pouco, belo, elegantemente esbelto, daqueles que gostam de liberdades, logo, de autonomias, bens preciosos de que fora privado aquando do último alojamento em mansão de luxo. O meu dono não me merecia, voltou a falar.

Merda para o meu dono, recusara as mordomias, preferia ter uma vida de cão esfaimado e folgada, mas fazia-lhe falta algo com aspeto de gente que o compreendesse e que até o estimasse, o afagasse nas noites de insónia, pensava agora naquela que poderia vir a ser a perda de vontade de dormir e ficar a contar as estrelas como as pessoas, sentia quase como a gente sem saber o que fazer mas havia decidido que o último dono nunca mais: era tempo demais fechado e, na sua condição canina, lutava por uma terra sem amos, era bem capaz de dar lições aos homens, em especial aos que se parecessem com o seu último senhorio. Agora era manhã, não queria dormir, por opção resolvera espreitar o mar, espreguiçar-se, como as pessoas, à procura de pão. E de paz. Como as pessoas de verdadeiro e reto bem.

António disse olá ao cachorro, gostou dele, mas não ousou misturá-lo com a princesa, por enquanto limitou-se a magicar que se a pintura se soube autonomizar por que não ceder a liberdade aos cães de escolherem ser livres ou servis, por que não promover a despenalização da recusa voluntária de domesticação.

A história da libertação dos cães é ainda uma pequena ilha.

Olhava de novo a revolta deste oceano imenso, pintado de verde-prata ondas de furor, estendido e salpicado o mar de carneiros velozes e brancos, uma nortada sem fim, adivinhou, um verde-escuro ainda a meia distância, o cinza e negro na despedida do horizonte. Impressionismo. Ora, ora, esses ismos levam quase duzentos anos e Monet o Claude não nos deu autorização de fixar o instante fotográfico, que já mudou, que vai cambiar a seguir e logo e sempre, uma nuvem carregada escondeu a luz, desiste pintor.

Não é impressionismo marítimo não, é a nova vanguarda pós abstração como gostam de dizer alguns peritos. Respeitemos o mar, não há máquina nem palavras que fixem este momento. É o tempo de mergulhar, sabor de sal: não, Catarina, apenas até onde houver pé, e nada mais, o mar e o cão são nossos amigos pai. Meu querido pai meu marido, levanta outra vez por cima do mar, quero ver o mar na distância de léguas.

E o cão lá ficou onde estava e à mosca, que lhe parecia grande e a quem salvou, e o incomodara, pediu-lhe que se deixasse amar, na sua linguagem autónoma: observou-lhe as quatro principais patas, o indispensável ferrão que deveria ter uma função igual à da sua bocarra, e a cabeça cerebral articulando os movimentos prontos para o arranque mal o seu maldoso carcereiro aligeirasse suas formosas patas dianteiras, agora nela estabelecidas. As asas finas e transparentes voaram-se, rasteiras e agradecidas, e disseram ao todo da mosca que acrescentasse ao cão vadio, eles conheciam-se, caramba, karma positivo, um pouco de visão penetrante. Com efeito, o cão decidira naquele dia e mais uma vez ser positivo e bom, generoso e compassivo, à boa maneira dos seus congéneres orientais. Dava o cão lições de humanidade.

Disse desinteressadamente: se não acumular mais karma positivo, ao menos não acumularei negativo, cos diabos, carago, um cão também pode ser altruísta.

Deu as mãos, os braços e os lábios ao vento e à pequena Catarina, num caloroso passeio pela praia deserta. Ficou o cão sem nome, perdão, o vadio, a mosca foi-se, coitadita. Apesar do que se disse dos carneiros, a maré desenhava-se tranquila, cristalina e aquática no seu perene e altiloquente fluxo versus refluxo, lá ao fundo, junto aos rochedos pejados de caranguejos e mexilhões, desculpai restantes presados moluscos a vossa omissão, poças do cristal líquido devolviam-lhes sorrisos e amores. Aparentemente. Uma harmonia indizível, quem havia de dizer, em casa a segunda princesa ficara a fazer que sorria na despedida, a sofrer.

Assemelhavam-se a dois amantes verdadeiros, pai e filha fundidos: outra vez o dia, outra vez o mar, o sol, o rafeiro e vadio cão a pedir lambeduras de liberdade.

O senhor António, com sua licença, era assim que se via nesta bela manhã, mais uma de julho ainda, linda, batida pela brisa marinha escultora da praia: estúpido, fraco, egoísta, inteligente, afável, amante de sabedorias, filósofo de mentiras, historiador de arqueologias esquecidas, cúmplice de minorias, medíocre; sentia-se um potencial candidato a terrorista: esta palavra é produto da globalização, senhores.

Mas não tinha quem o ouvisse, daí o amasse muito e desmedidamente, o tema de reflexão desta manhã era a infância na queda para a masturbação compulsiva, e no orgasmo convulsivo do ontem via toda a multidão de artistas, poetas e músicos de talento que o escutavam. Aprendeu a fazê-lo era ainda tó, já se sabia, nas densas bordas de hortelã e malva e nos socalcos naturais do monte grande, onde o rosmaninho se deitava e a carqueja o comia, inscrito no mapa dos catorze anos concluídos. Algures no outono marcelista, aos quinze estreou-se com mulheres até dizer basta de te andares a prostituir rapaz: mas amou, oh se amou as saias retintas, até ao cair do sangue e do cio. De homem cão em lambeduras de liberdade.

Comeu o pão que o seu deus feito família na puta da pátria amassou e bebeu o vinho que o diabo feito António de família sovou.

Agora que recordava os seus brinquedos inexistentes, os principais e os outros, agora que saíra da terra de nenhuns, como rebola na cabeça do pensamento o sonho a eles, de suas iniciais aprendizagens, sentia-se pronto para a filosofia, a história, a antropologia. Gostava de repetir, desde a mancebia, recordava ainda: é preciso lançar sobre as pessoas e as coisas e lugares um olhar de pesquisa: eu olho a todos com o meu olhar antropológico, vulgar jogo de candidato a pensador.

Porquanto nesse tempo continental e atlântico, tempestuoso e temperadamente organizado, das contas que fazia e escrevia era notório que não sabia o que era a antropologia. Depois, na moderna e decadente universidade, oh humanidades para que vos quero eu, inscreveu-se no curso de antropologia cultural: rejeitou o curso e a educação civilizada, decidiu-se de novo pela solidão, uma vez mais: recusou a douta masturbação de ideias em grupo. Não era de poliamores e era homem: masturbou-se. Copulou depois. Singrou no centro de saúde. Agora cismava com santiago a pé, todos os caminhos, a autopista conhecia bem, ciente de não os poder cumprir, como nuno alvares pereira não cumpriu, que nem por isso deixará de obter sua santidade na terra e no céu, carmelita foi no convento que será quartel e há de testemunhar a queda formal da lusa ditadura no ano da graça de mil novecentos e setenta e quatro. Vinte e cinco de abril sempre, disse. Só o mar ouviu e o cão do outro dia.

A Catarina perguntava e respondia às suas próprias aflições tranquilamente.

Só o mar viu um caranguejo que rastejava, delinquentemente atropelado no que sobra da grande rocha primordial. António teve de contrariar a pequenita: vamos, amanhã há mais, a outra princesa espera-nos, onde, no quarto, onde, eu sei, no quarto, ela está sempre no quarto e o sol do mar fazia-lhe tão bem. Repetiu-se na sua linguagem diminuída e repetida, mas cheia de luz e foi à terceira que partirem estrada fora. O vadio ficou a olhar, augado de carícias, fixado nos adeuses de António e Catarina.

O mar é um excelente tranquilizante. No dia seguinte regressaram à praia, o cão sem nome ou vadio estava lá a pequeno-almoçar uma pequena mosca que se atrevera a ferrar-lhe uma orelha dormente e a lamber-lhe uma minúscula porção de remela. Ambos pequeno-almoçaram: a mosquita morreu comida, o camponês livre na vez de cão levou a melhor. É como a relação dos donos do mundo com o resto da humanidade. Esta voa e sobrevoa, e no voo tresmalha e arrebanha as migalhas da mesa do senhor, e, um pouco à toa, aqueles, os que do mundo são donos, enviam o raio de lúcifer, o castigo de deus, ou de júpiter ou de zeus e matam as multidões em debandada.

Os nossos representativos donos, diga-se com mais fé, e respeitosamente, os nossos colossais empregadores, que deus os haja sob eterna proteção, são os filhos legítimos de deus. São necessários mil pobres para fazer um rico, oliveira. Martins dixit, benditos sejam os ricos que aos pobres garantem sobreviveres, disse o povo na sua sabedoria ilustrada e antiga, ensinada de geração em geração. Serás tu laura, António.

Deus pai todo poderoso, tende piedade de nós, vai ali uma criança a passar, visivelmente aflita, não digas que não viste pai nosso que estás no céu, o motorista carregou forte no acelerador: uma criança no estradão. Não parou, para quê parar, também ele tem uma menina para sustentar e não se queria encarcerado e foi uma morte legal, para quê o arrependimento: esborracham-no os sonhos de uma criança.

As guardas eram altas, como passou a criança espavorida a meio da noite numa estrada proibida, quem se esqueceu dela lá, quem é o pai assassino, quem é o motorista eufórico e abjeto, qual o anjo da guarda de serviço. A televisão não explicou mais nada, mesmo sabendo da compunção geral.

A televisão tem tantos dramas, hoje, para dramatizar, queremos audiências, estamos em guerra: cumprimento de profecias.

Os abutres andam todos no ar, com particular incidência nas terras onde o nazareno nasceu e o seu sangue foi semeado, logo tinha de ir nascer no médio oriente. Depois, que o acidente fosse noutra altura, nem faltam por aí meninas a morrerem e a viverem mortas de fome, como aquelas que o excelentíssimo senhor doutor hoje, esta noite, teve a gentileza de vir aos nossos estúdios para explicar ao país.

O especialista convidado impacientava-se, trazia numa pasta negra as estatísticas sobre as perturbações no país e no mundo, os respetivos estudos nas áreas de maior propagação, muitos deles via internet, tinha pressa, o jornalista também, o povo está habituado à desgraça. Contam para o currículo de ambos e para a vaca que já sabemos sagrada, mais uma, os estudos que se vão amontoando conferem certezas que urge dizer ao mundo. Vai omitir o caso particular da Antonieta, deus queira, ele conhece-o bem, não que se tenha interessado, suspeita-se, mas é importante não expor a princesa na praça da alegria.

O parvalhão segue feliz com a vida de ombros mais altos que o normal dos ombros no seu natural erguidos, não ouviu nada do que eu dissera na reunião da associação dos familiares e amigos, nem hoje está a ouvir pelo menos a pobrezita da rapariga, a primeira princesa, tenho em definitivo por certas as tuas razões mulher que recusas estar na origem do pecado, estou arrependido Madalena de não crer acerca dos homens loucos e da universal loucura, por que estamos então aqui António se até tu acreditas em mim, estranho este falar miúdo bem percetível ao delicado e inteligente ouvido esquerdo da Catarina que ficará triste naquele fatídico dia da sessão única de terapia familiar no setor de psiquiatria do hospital. Dia que há de vir, antecipou António.

 

 

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