10@norte

10@norte com Guilherme Filipe

“Bai-me à loja!” é, para o ator e investigador de teatro, das melhores expressões populares tripeiras. Amante de umas boas papas de sarrabulho não se coibiria de convidar Richard Zimler, para o acompanhar no repasto. Guilherme Filipe destaca o Parque Nacional da Peneda-Gerês como um verdadeiro paraíso português e entre as figuras fortes desta região escolhe António Capelo, pelo trabalho que “persistentemente desenvolveu” em prol da cultura do Porto.

O melhor refúgio do norte?
O Parque Nacional da Peneda-Gerês é o paraíso português que convida à fuga ao bulício da cidade. A tranquilidade dos sons da natureza apazigua os ouvidos ensurdecidos pelo ruído citadino e desperta em nós a memória de tempos de romanceiros, de lendas e narrativas fantásticas de cavaleiros e castelãs. Um retorno ao espírito da terra para suportar o espírito da cidade.

A melhor frase que ouviu?
“Bai-me à loja!” Das melhores expressões populares tripeiras, quando já se não está suportando o interlocutor. Tão mais discreto, e elegante, como aviso prévio para evitar “lebar na tabuleta”, se não “andor, bioleta”. E, menos mal, porque se “se num bais à bolta”, “estrelinha que te guie” e….

A melhor figura desta região do país?
Destaco, entre muitas que poderia citar (a região é fértil em talentos), o António Capelo, pelo trabalho que persistentemente desenvolveu em prol da cultura do Porto, cofundando o FITEI, importante festival na difusão do teatro e na formação do gosto do público, criando a Academia Contemporânea do Espetáculo, e, mais recente, o esforço glorificado a conseguir dotar a cidade com uma Casa de Teatro e das Artes, o Teatro do Bolhão.

A música que representa o norte?
Isabel Silvestre e o “Cantar de Emigração”, da poetisa galega Rosalía de Castro e música de José Niza. Na voz dolente da cantora perpassa o drama da partida, o flagelo migratório que o norte de Portugal tantas vezes sentiu na pele das suas gentes e que agora assistimos na pele dos infelizes que por cá procuram a paz possível da sua sobrevivência.

O melhor espetáculo que viu no norte?
Injusto citar um apenas, mas recordo sobretudo um, porque foi num tempo de grande movimento cultural de formação de professores por essas terras do norte. Em 1982, assisti a Um cálice de Porto, no velho espaço do Seiva Trupe, em Campo Alegre. Uma excelente noite de divertimento, pela mão do encenador Norberto Barroca, cujo trabalho conhecia de Lisboa, na Casa da Comédia, em registo mais sério. Figura importante do pensamento teatral activo, saliento a sua obra mais recente, a tese de mestrado, A opereta em Portugal: Da ditadura militar ao Estado Novo (2008).

Com que figura nortenha gostava de jantar?
Richard Zimler, o “portuense que nasceu longe”, como afirmou o autarca Rui Moreira, que projecta “nas linhas, e nas entrelinhas” o olhar da liberdade, do afecto, e da compreensão entre pessoas, na pintura que faz de um dos episódios negros da história portuguesa da intolerância, em O último cabalista de Lisboa: tão longe na trama e tão perto na temática contemporânea mundial.

O melhor prato?
As tradicionais papas de sarrabulho, rescendendo a cominhos, acompanhadas com rojões à moda do Minho e broa de Avintes. E mais não justifico, a não ser que as provem, quem nunca as provou. Ah, que me esquecia: tudo regado como vinho verde tinto, bebido em malguinha.

O monumento mais interessante?
O Santuário de Santa Luzia, em Viana do Castelo, vale não só pela beleza interior, como pela exterior. A serenidade que se respira no ambiente neobizantino iluminado pelo sol poente entrando pela rosácea, preenche qualquer crente, tanto como a sensação de plenitude que se obtém na visão panorâmica da cidade, do rio e da serra circundantes, celebrando a visão panteísta do Criador, através do Homem.

Um episódio caricato que viveu no norte?
Em 2007, foi levada à cena no Teatro Rivoli a peça Miss Daisy, em que contracenei com Eunice Muñoz. No final de uma matiné dominical, quando saíamos para ir apanhar o comboio para Lisboa, tínhamos um grupo de senhoras do Porto, que nos esperavam na porta dos artistas. Uma delas ofereceu-me uma camélia, para que eu a colocasse futuramente na lapela do casaco. Disse-me que ficaria com o ar distinto do actor Carlos José Teixeira, um dos nossos galãs de cinema da década de 1950. Agradeci esta prova de estima, de alguém que mostrou apreciar os fazedores de sonhos. Senti-me transposto para os enredos em Amantes do Tejo, A Costureirinha da Sé, Um quarto com vista para o mar, ou Verdes Anos. Onde paira a indústria do cinema em Portugal? Fiquemos por aqui… antes que me digam que “estou a meter um berdete”!

Se escrevesse um livro sobre o norte que titulo teria?
Novas viagens na minha. Desde Garrett até à atualidade, tanta coisa se alterou, tanta coisa surgiu, ou se reinventou na vida portuguesa, para alegria, espanto, ou desconforto de quem interpreta as transformações, que valeria a pena um olhar crítico isento sobre a realidade cultural portuguesa; uma reflexão bem-humorada, a la Bordalo Pinheiro, sobre a convivência possível de tradicional, que sobrevive a custo, e o novo-riquismo da moda que se importa do exterior, sem se importar com a cultura local.

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