Opinião

MUNDO DE PRINCESAS -VIII/XV

OITO

 Passa-lhe, é meu pai. E por que não havia de passar-lhe sendo ele um homem de nervos de aço à flor da pele e de artérias gordas tão expostas à obstrução do miocárdio, um homem no caminho da suprema beleza, tangente ora visível nas tintas do sorriso inigualável, ora na terrível altivez com que me fita. Eu já o adverti: não me olhes com esses olhos que me matam.

Antecipadamente peço-lhe desculpas sempre que sou apanhada, sem culpas atender como verdadeiras, antes dos perdões dados que sempre chegam a jusante dele e a montante de mim, eu já o sei antes da aparência demonstrada: conheço-lhe as ruelas do humor melhor que as lágrimas vertidas nos sacos da dejeção: é o meu pai da infância. E, no entanto, o seu modo de me olhar é inquisitorial quando sabe dos meus segredos desguardados: detesto e sofro com essa beleza tenebrista. Caravaggio era pintor de dramas, tu não passas de um amante de um mesquinho centro de saúde, perdido na autopista de santiago e portador de veleidades de cronista.

Lembrar-se-á ele do quanto me ensinou, agora é a si que que me dirijo se me ouve ou lê, acerca dos meandros da personalidade, das eras em que ingenuamente me imaginava a ler os clássicos destinando-me um estatuto de princesa do renascimento, duquesa de uma qualquer república italiana de quinhentos. Sonhou tanto o meu fabuloso velho com aquela viagem fatal às ruínas romanas e ao estado pontifício que eu até acreditei andasse ele a seguir as arqueologias dos passos dos santos doutores. Mas ele era todo clássico e do renascimento e sonhava com uma princesa encantada, uma cariátide de Fídias, amante das letras e das ciências, sem tempo para a futilidade: a carregar o templo helénico. Ele é o meu atlante. Pudera ele e fora um homérico a decifrar oráculos, tão ciclópica era a sua empresa.

Como te lamento, criatura embriagada pelas ninfas de apolo no parnaso. Não voltes à terra das cíclades, não voes para lácio. Vai a santiago a pé pelos caminhos de terra batida e depois mete-te num convento a contar os dias que te restam: perdoa, mas às vezes tenho de delirar, depois do choro compulsivo e manso vem sempre aquela dor insuperável, o aperto de todas as culpas, mesma das que não tenho, insuportáveis; não aguento mais: desculpa papá, foi a última vez, esta nem contou.

Nada sei do teu envolvimento corpóreo e espiritual, quando das tuas fascinadas investigações ao redor do rapto da mais bela mulher helénica e que custou a guerra terrível entre gregos e troianos e deu heróis fenomenais ao mundo ocidental, mas sei de Lívia, a romana que te seduziu até às brasas.

É verdade, leitor confidente e amigo, Lívia seduziu-o com os beijos suspeitosos roubados na foz do rio onde ambos mergulharam a pretexto de que a cidade de deus não era só o vaticano e que há teatros concertos museus praças mulheres bonitas e homens e noite na urbe que foi capital do mundo antigo: não, as nossas praias não estão todas privatizadas, e espetou-lhe os beijos gulosos naquela areia de lume que dizia ser livre e aberta ao amor. Praia, interrogou-se ele, viessem os romanos à terra que foi de vãs glórias lusitanas e saberiam o que é uma praia de todos: Lívia, tu és a personificação da beleza italiana, deixa-me ficar eternamente no teu hotel a ouvir a tua voz e a música clássica será eterna em mim, prometeu o meu amado António sem ter possibilidades de cumprir: o que se diz a fazer é pra esquecer, deixou escapar esta frase lapidar que define todos os homens e muitas de nós.

O tempo não se deixou congelar e o meu velho herói regressou à pátria de suas mulheres, a cumprir fidelidades, mas quase fazias um filho na capital do antigo império do ocidente: não te escondas sob o bigode de todos os disfarces, nem tempo percas na associação que dizes de familiares e amigos: tu sabes que é pura perda de tempo: a doutora falou-te de uma certa cronicidade, António.

Não te arrelies com a Antonieta, a segunda, cuida de ti meu belo e moderno pater famílias, da fabulosa Maria de Magdala e da nossa primeira.

Era verdade que na reunião da associação, os especialistas, com a cátedra a expandir os ombros e quase em bicos de pé, o teto a apequenar-se na sala, declaravam a penúria de suas respostas empoleirados nos profícuos estudos de comportamentos muito vistosos e inumeramente analisados em todas as idades, e, quando na minha idade paravam, sentiam sérias dificuldades no olharem nos olhos a fundura do meu candidato a idoso pai, ali todo empenhado na salvação do mundo, evadiam-se então pelos ares de toda a sala emprestada pelos soldados do fogo, os sapadores bombeiros da cidade grande, olhavam-se uns aos outros como o deus da medicina mandou e balbuciavam algumas palavras pouco audíveis porque disformemente soletradas:

há os casos de cronicidade, aqui não é um consultório, os comportamentos dos adultos e das crianças são mal conhecidos, poderão ocorrer sessões de terapia familiar. A alimentação é um mal geral. Há consultórios na cidade, bruxas e demónios são de rejeitar, tão pouco deus está convocado a dar palpites, não temos tempo no serviço nacional de saúde. O serviço de urgências é dentro de casa: que venha a fome verdadeira e quero vê-las a rastejar por um prato de sopa.

Entreolhavam-se as sumidades e os circunstantes percebiam que a doença era uma criança cheia de predisposições e desconhecimentos: na atmosfera adensava-se a dúvida e tu não tens dúvidas sobre a desumilde presunção da sapiência feita.

Mas tu ouviste isso tudo e vamos às tais sessões. Assim será. Todos, dona Madalena e tudo. Como compete, se e quando o médico mandar. A Catarina vai faltar à escola, eu faltarei na faculdade. Sem problemas de maior, todos faltaremos aos nossos deveres para acudir aos direitos de te retirar de lá: tu sabes de que estou a falar.

Ou não acreditas, desde aquele dia em que os dois nos abraçámos no final da reportagem do doutor da margem sul, onde desfilaram magrezas realmente magras até aos ossos com sinais inequívocos de punhaladas. E longamente chorámos, apertados.

Nessa noite limpei todo o teu rosto: a toalha ficou molhada, no começo tu não choravas como era próprio de um homem imperturbável, fingindo pedra no coração, mas ficámos amarrados aos soluços um do outro: lambi-te as lágrimas, a minha cadela saboreou gulosamente as minhas e ajeitou-se entre nós: adormecemos os três como amantes apaixonados.

Passado é passado, é urgente que acredites e que a nossa romaria aos hospitais comece a abrandar: estou cansado de me cansar: há urgências e internamentos, sim, eu sei meu querido pai, mas primeiro não quero evitar o inevitável, quero recordar-te como tudo começou, nem me voltes a chamar o nome que te vai nos lábios com esses olhos que não aguento mais: urge o teu silêncio que é de ouro, deixa-me falar.

O tamanho do prato anda a incomodar-me muito princesa, tudo começou assim e tudo parecia tão normal, e os estudos no zénite, que podemos então recear, mas a insónia é um sinal perturbador minha querida, tudo se resolve com uma consulta de rotina, lembraste, António. A amenorreia foi um nome feio quanto o do ciclo menstrual, mas muito mais higiénico e limpo e eu a gostar, a gostar do peso que descia, a descer vertiginosamente e dei comigo a contar as calorias todas que ingeria, a diminuir um pouco mais, guerreira, mulher espartana a rejeitar todos os homens, todos eram gordos e tarados e só queriam reproduzir-se em nós: anemia, simples e de fácil cura, tudo em breve retoma a normalidade, Antonieta, se não menstruas há tanto tempo vais a uma consulta do doutor José Maria, o amigo da nossa amiga do centro de saúde teu amigo do cais da noite, não ligues ao nome do hospital se tiver de ser, também ali se tratam os que estão tratados.

Está louca a rapariga, que mais vai ela inventar, disse a outra. Que loucura, Magdala, as anemias podem ser evidências de maleitas desconhecidas, perturbações teimosas a agarrar-se ao apetite, a fazer túneis no metabolismo da alma, a gente sabe-lo lá, de mais a mais uma consulta não faz mal a ninguém, a mim só em assustam as insígnias do hospital, se for essa a decisão da médica de família. Não precisas de te incomodar, eu vou com a rapariga e tenta rever o mundo sem olhos ensandecidos. Tresloucados, queres tu dizer, meu ingrato homem. Não fales mais de libertação das mulheres: muitas de nós queremos a escravidão, senhor.

Longes eram então os tempos das dosagens de drogas aprovadas, por enquanto a lógica apercebida estava numa palavra de fazer acordar e estremecer catarina de siena, ela que nunca dela ouviu palavra, aquela que morreu de tanto jejuar em nome de deus, a dolcissima mamma pregadora e diplomata na causa da reunificação papal, ao tempo dividida entre a cátedra romana e a cismática casa francesa de. Avinhão, mas ele é espantoso o papel de algumas fêmeas na história, não trates assim a santidade das mulheres, eu conheço-te o fascínio pela virgindade das destituídas e púdicas, hipócritas e ímpias, não esqueças que fui crescendo nas altercações dos livros naquelas manhãs de todos os sábados, sobretudo não esqueças que eu sou uma mulher e todo o meu corpo cresceu, isto seria plágio do andrade, se o não citasse. Eugénio, e tenho vergonha de sê-lo. Mulher.

Não esqueci o tempo dos abraços em público na baixa de mãos dadas, nem da vergonha da tua amiga Carlota Joaquina a ladra, sim a tua Locas roubava em todas as livrarias por onde andávamos e eu já sabia que é tão ladrão quem mete os livros no saco cheia de lata como quem vê e sabe do crime organizado. Não havia câmaras de vigilância e tudo na tua amiga era sedução e honestidade. Nunca te disse, mas hoje vou desabafar, cheguei a chorar por ti e por mim quando ela, malcriadamente pronunciava: eu sei ser uma senhora, mas também sei ser muito puta. E ladrona de livros e perfumes e bijutarias de que se orgulhava. Uma santa mulher, de uma estirpe outra.

Não há certezas sobre as razões profundas das santas mulheres. A medicina mente, a história, que a todos os saberes diz presidir, anda a reboque das modas e dos imprescindíveis interesses das elites: ontem, foi dos senhores cavaleiros e medievos deslumbrados, com orgasmos de sangue e espada, a cruzada como lema e vício da fé e cantigas de amigo e de amor para constar as poesias do tempo; ontem, ainda, foi a vez das linhagens fidalgas e dos príncipes e monarcas de todas as aberrações, cada qual com seus bastardos para serem homens cobridores de mulheres alheias e nem lhes ocorria serem as suas, pronome possessivo, cobertas nas barbas do paço ou da corte, orgias e banquetes de sangue, emboscadas e troféus, e milhões de vítimas sempre a aumentar nas praças das derrotas e meias vitórias adjacentes; hoje é, finalmente, a história uma iluminura de burgueses e dalguns monarcas endinheirados ou falidos, modernizados, todos em cada tempo sempre tão verdadeiro e a seguir ultrapassado: somos a memória que sobra, outra lição que tive de encontrar.

Percebi então por que insistias em humanidades, sabendo que não há mais que fragmentos literários. Línguas e literaturas, sim senhor meu saboroso pai.

Ele há cada doença que a gente nem imagina, tomas umas vitaminas e logo, logo passa, não estudes tanto, não trabalhes como guerreira nos alicerces das cidades, vamos com calma, a Catarina anda nas inquietações próprias dos meandros da puberdade, menstrua como a todas as mulheres na idade própria a natureza parece querer antecipar: preparação do caminho para os campos de batalha, rego de sangue; então tu não vez que a maioria de nós deseja meninos masculinos e feramente robustos e se possível loirinhos ao jeito hitleriano da beleza e da masculinidade universais, com olhos de céu germânico para comando do mundo.

Parimos meninos para a guerra: não quero ir lá a ver as duas toneladas de cabelo das mulheres higienizadas pelos nazis, os fragmentos da vergonha da nossa civilização: Cracóvia foi desumanizada e nem o sal das minas me aquece a alma: o campo da morte de birkenau não: há visitas de estudo que não faço.

Pai, quantas vezes viste a lista de schindler, sabias que ao militar meio generoso foi dado o nome de uma sociedade portuguesa de ascensores no tempo do estado velho, aposto que foi uma premonição da boa fama, o homem da lista foi imortalizado; conheces a lista do nosso a de sousa. Mendes.

De quantas santas ouviste falar antecipando vaidades e libertações de género.

Não sabia, Antonieta, eu bem te dizia que seguir as humanidades era mais virtuoso que as ciências exatas. Inexatas, papá, inexatas. Mas não me fales mais de letras, nem das artes, não me impinjas os clássicos, sabes muito bem os caminhos do tempo novo, do velho e abstrato tempo globalizado: farei pós-graduação em comenius ou erasmos e regressarei novíssima em folha dada: sim filha, façamos de conta que vale a pena sonhar. Iluminada em línguas hás de singrar: não esqueças o grego nem o latim, o árabe se puder ser nem o mandarim que estão a dar.

Não te estou a reconhecer, António meu pai, que ser tão contraditório me parece vossemecê hoje, se nem acredita na minha eletricidade, nada disso princesa, foi uma intuição desperdiçada, uma ironia despropositada: isto não passa de uma anemia, tu vais ultrapassar.

Vamos ao médico todos os dois apenas. Não urge necessário meu querido e amado pai, eu sei quem é o José Maria, tu não sabes tudo, num bar ribeirinho adregou de conhecê-lo é verdade, mas pouco sóbrio também é de verdade, não sei se de espirituosas bebidas se de ganzas se de mim: beijou-me e eu não disse nada, não sei até onde fomos, eu deixei-me embriagar. Mas isso não é bom, ires tu a consultar um técnico superior de saúde que teve a desfaçatez de te beijar embriagado. Eu não disse que foi uísque, talvez a droga tenha sido eu mesma.

Pudera, bela como te apresentas quem resistirá aos teus olhares de deusa. Afrodite.

Fui consentida e admitida graças ao p um da médica de família, o Zé Maria deve ter dado um jeito, se ele soubesse como abomino o país da cunha, e foi uma relação de paciente com o seu novo médico que se estabeleceu. Enquanto a mim me estudava e sem esforço me penetrava em aceitações incondicionais, compreensão do outro como se justificou, pus o radar naquela que podia vir a ser a minha nova morada. Premonição.

Oh, Antonieta, o teu sentido de humor é-me familiar, dá-me a receita eu vou aviar.

Falamos muito de um psicólogo americano com quem os europeus andam a aprender o novo catecismo, achei bonita a empatia do meu fiel amigo, do meu confidente, falei-lhe de ti e da mamã, pus tudo a nu enquanto tudo ao redor eu pesquisava com os olhos de ver o outro lado de Carl Rogers, vais ter de googlar, aquele que cresceu numa américa onde muito amor foi criminalizado. Ainda o amor é crime em boa parte do mundo.

Distante vai a ilusão do tempo antes do aumento da dose anti depressiva, viva o prozac sem platão, da tal terapia familiar arremessada e consentida, do quase tudo que restava a eles fazerem, porém, e sem o saber já me encontrava nos trilhos do internamento: a casa que faltava: foi o que se viu, papá.

No hospital do Zé Maria as primeiras sessões foram tão sublimes que até pensei reaprender a amar os homens, chegámos aos abraços, ao lacrimejar do diagnóstico agarrado à alegria da encantada sedução, à confidência confiada, à verdadeira aceitação incondicional do outro. O amor esteve nos nossos olhos, no nosso corpo quase fundido, evaporou-se num abrir de portas diligente, explicou a seguir que o que aconteceu não era deontológico e que aceitaria qualquer punição profissional.

Depois partiu e não sobrou mais nada senão o cadastro da minha vida confessada: entreguei-me à medicina e nunca mais confiei.

E tu, o pai mais perfeito do mundo, o homem a quem até as que vendem a alma junta com o corpo diziam não haver mulher mais sagrada que a que ao mundo deu tamanha criatura, tu o homem incrédulo dos incrédulos foste procurar por dona Maria Ana. E nada.

Tudo se precipitara, a balança minha amiga foi-me roubada, eu surripiava o que podia para me dotar de doses legais em casa: batatas, bolos e bolachas, ovos mexidos e caldeiradas de carne com peixe, arroz com farelo e enchidos, tudo dava, tudo para ser despejado. Que era grave, começaste tu por dizer, que não podias tolerar e toleravas, dezenas de vezes traído nas promessas que eu não podia cumprir, até contigo me levaste em passeios de tortura, em detestáveis piqueniques que só a Catarina desfrutava, para santiago a ver as pedras do chão e as ruas tão povoadas, para o centro de saúde onde cheguei a pernoitar obrigada, só faltou um cadeado. No fim da linha, a tua sábia pergunta proverbial, sem apelo nem agravo: o que tem de ser tem muita força, vamos a internar.

Como sempre, anuí às tuas imposições autoritárias.

Registe-se a entrada da paciente, dissera o carvalho. Domingos, o doutorando em vias de receber cátedra de senhor professor, com assistentes e tudo o resto antes de jubilar, fez a sua avaliação a contragosto e apressada, inquiriu quanto soube, desalinhado, brutal: aqui quem vai ficar é a menina sua filha, tu costumas regurgitar como as vacas, disseste quase tudo nada omitas, nada de truques, aqui há um regulamento a cumprir, o teu doutorzinho já não trabalha cá, terás uma visita por semana, o senhor pode vir daqui a quatro dias se não pactuar com a doença, em dois meses quero-te curada, daqui para fora, temos mais que fazer do que aturar depravadas, não, não pode entrar o senhor, sejamos claros, aqui quem manda sou eu, os dois vão obedecer, nada de géneros nas visitas, se não gostares disto e daquilo comes do que escretas por cima, tenho muito que fazer, serás vigiada por pessoas de todas as idades, há de tudo, das menos loucas como tu às mais desaparafusadas. Obedeces às operacionais, terás um internista quando calhar, um luxo deste hospital.

Quando calhar, a boca secou-me, a náusea subiu o corpo todo, ressoou o grande arrependimento: como vou tirar daqui Antonieta.

Papá, meu amor, dá-me um abraço, cumpramos os regulamentos do hospital, na ficha que preenchi consta o nome de Santos, deve ser o tal médico quando calhar, o que assiste aos internados e está na consulta externa a ocupar a vaga do meu antigo José Maria, que saudades, papá. As mulheres que não venham, tudo há de passar, perdoa-me toda a minha maldade. Tu és uma filha maravilhosa: quero tirar-te daqui a quinze dias.

Não esqueças, quando vieres trazes-me o teu retrato. Nos três primeiros dias não podes vir, nem telefonar, leva o meu telemóvel, aqui não serve pra nada, daqui a quatro dias podes saber de mim, virás tu uma vez por semana, não chores que me matas o coração. Tu és o meu herói: eu sou a tua princesa.

A primeira coisa a fazer foi saber a morada exata da dona da morada aberta, a dona Maria Ana, que na urbanização era idolatrada por uns e censurada por quase todos, incluindo os que a quem ajudava, e que acabou a repetir a opinião das mulheres da noite: bendita a mãe que dá à luz um filho assim, e acrescentou: Antonieta está numa encruzilhada custosa, mas e como muito bem sabe homem de deus, eu não sabia de nada, foi a simples calcinha rosa choque que me deu os traços da cartografia que faltava: terá entrada direta no céu, sem bússola e sem gnómon, que nas alturas celestiais tudo está rumado e não há sombras, mas antes dessa ascensão terá a sua filha um futuro luminoso com roda de filhos e esposo, e com os pais maravilhosos que vejo e antevejo, a luz das trevas vencerá.

Mas precisa de fé, continuou, no altíssimo e na virgem, nos santos da sua devoção sendo cristãos e do coração sentidos, que outros não, aquele que ali está e que me inspira na fabrico desta poção, é de aplicar duas gotículas todas as noites ao deitar, feita do balsamo cuja receita é tão só minha e do meu crucificado: nada tem de pagar: se a isso o impele a generosidade, a quantia que encontrar no coração, senhor António, deixe ali naquela peça de prata.

A sua mulher devia participar, ela não pode apartar-se do mundo: o senhor está no centro dele ao pé de deus.

Já foi a delfos a ver o centro do cosmos, não, não é aí nem no olimpo que as coisas divinas se decidem: é nas alturas, no palácio invisível de todas as certezas. Esta pedra do caminho não passa de um pedregulho de pouca dimensão, nada mais que um minúsculo cálculo renal: agora sim, estou a vê-la, a Antonieta está lindíssima e respira da saúde intemporal: a sua filha chegou aqui sem aqui entrar e agora sou eu a que vai rezar pelas igrejas da cidade: este é o meu cálculo, o meu lado sisífico até que a morada se feche como a todos fechará.

Mas que bem está a sua filha, agora posso vê-la claramente, que tranquilidade. Benedita a mãe que dá à luz um filho assim.

Antonieta, soube-se depois, passou três dias a chorar, a transpirar, a soro de sobrevivências, vigiada no duche matinal, apanhada a roubar pão e as bolachas amorosas dos cacifos da ala feminina em que foi hospedada no modo de isolamento profilático, agredida sem comiserações, as mulheres são tão más umas com as outras pai, tristemente desfigurada e maltratada a testar os limites ou aquilo a que nomeiam resiliência, e muito, muito esfomeada. Mas ao terceiro dia conquistou uma das menos loucas que lhe veio a servir de ancoradouro neste tumultuoso mundo no centro da cidade grande. Mentiras de dona Ana, a lenda do bairro e de toda a urbanização tem pés de barro.

Hermenegilda foi a santa que saiu do altar armada de estratégias para me ajudar. Saíra do noviciado, estava pronta a noviciar comigo, apiedou-se a transmontana, congeminava havermos de saltar o muro em fuga deste desterro imposto pelos nossos amados pais, que também a minha prestimosa amiga vestia a farpela paterna, ainda que ensanguentada: ela fora violada, eu não, esta era a única e radical diferença e um fio de cabelo num hospital prisão obsequiou aos nossos dias toneladas de diferença.

Percebi de imediato que a Hermenegilda era possuída de desejos despoletados na casa paterna e do avô, descoseu todo o desequilíbrio emocional aos falar dos rapazes com quem se fantasiava, a mão quente que trazia um fogo de pegar incêndios no mundo, senti-a incendiária e ninfa dos poetas do campo ribatejano e musa de todas as mulheres em vias de libertação.

E era precisamente esta a minha condição, dizia-me, tu és aquela que nada teme neste mundo, a que não vais dar a cabeça à guilhotina, teu nome tem asas de liberdade, és uma doçura de mulher, Antonieta, em vias de libertação: come-me tudo, come as minhas entranhas se quiseres, hoje vem a minha mãe carregada de coisas e posso jejuar na tua vez e tu vais demonstrar que vais comer, que vais engordar, que vais tomar o caminho assertivo e a balança vai demonstrar a nossa mentira verdadeira; e se isso não resultar, saltaremos o muro: eu vou contigo, eu quero morar contigo, não posso enfrentar mais a depressão, tenho de partir deste porão: vem aí a minha mãe, é ela que está do lado de lá, disse que me trás novas. Serei libertada, já não tenho a certeza se quero, quero ficar contigo. Para sempre. O que se diz por dizer é pra esquecer.

Mas a mim até um telefone emprestado me tiraram, do meu pai nem uma palavra, o molho das chaves das operacionais, era este o nome que lhes davam, era assustador, chaves de gigante pesadas, experimentava na condição de candidata a noviça, destratada nas duras disciplinas, as penas da transição para o noviciado antes da clausura conventual.

Igualei-me aos pastorinhos, dois tinham morrido, sabe-se lá se por vontade de deus, a outra ficou a que guardou o último segrego da senhora. Lúcia, a que nada sabe de homens nem de mulheres, a que foi obrigada a clausurar os segredos que não tem.

As monjas do passado foram todas violadas, as do presente habitam os penitenciários das democracias, que o fundo de desemprego não dura para sempre e a estação da escravatura adornada de tecnologias sempre tem a sua vez: urge dar poder às multinacionais. Eu julgara tudo isto conversa fiada do meu saudoso pai. Como tardas, os minutos demoram mais que o habitual.

Em três dias vi o doutor Santos uma vez, no olhar dele vi melancolia, uma sombra do saudoso Zé Maria que se fora transferido, soube-o mais tarde. Senti-me a lazarenta mais ostracizada do manicómio, louca no meio de furibundas enraivecidas, era cuspida, mijada, objeto de injúria, empurrada, obrigada a rastejar por uma bolacha; senti-me a que gosta desafortunadamente de mulheres asquerosas, não podiam elas imaginar que era comida o que eu buscava e que o amor da carne buscá-lo-ia um dia no sexo dos anjos; a que está infetada pela mais devastadora das maldades, a matriz portadora do pecado filha de. Eva em anojos prometidos, a cabra e serpente dos homens mais cretinos, senti-me a preta abusada, vendida, emprestada, e cuidadora dos famintos lobos. Brancos e europeus e loiros com ares de raça setentrional, ou de tez escurecida e castanhos ou negros olhos do mar meridional: os velhos e modernos sinjoren, do lado de cá da mancha; o tripeiro e o alfacinha, o cigano andaluz e o canarino; os antigos e os novos espartanos e os de la champanhe, os eslavos, os germânicos e os euroasiáticos. Istambul, todos uns filhos de suas respeitosas mães. Perdoa-me, eu não sou de dizer palavrões.

Desculpa, Hermenegilda, não pude dizer-te quanto te odiara, tanto era o meu amor por ti: não te sabia incestuosa, muito menos à força, menos ainda que gostaras; quis o azar e a bonança que te viesse a conhecer na prisão do hospital a jogar às depressões.

Um homem agora, todavia, um homem português fazia daquelas mulheres ensandecidas a vez do homem branco a violar toda a minha condição: eu senti-me o buraco negro no fundo do poço donde podia medir as distâncias e ouvir o riso das outras mulheres, os ecos dos apedrejamentos, engolindo salivas de fomes e tomando os sons das minhas companheiras, doidamente festivas e de maldades acometidas, como a luz do dia que nos confins da memória residia. Carvalho sem perdão. Domingos.

Os suores frios gelaram-se-me, mas não me deixaram morrer, a soro estivera adormecida horas descontadas na minha vida: deu-me no ainda escuro a mão a minha amada, aquela que jamais esquecerei e a quem tinha roubado as bolachas: com um sorriso que se me gravou na alma entorpecida.

Obrigada Hermenegilda, eu tinha de te comer. As bolachas, perdoa-me meu amor.

 

Tags
Show More

Related Articles

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Close