
NOVE
Do outro lado da cidade grande a rotina de sexta à noite cumpria-se em sortes de autoajudas ajustadas aos termos da resiliência dos dias e noites da semana, aqui conferida, semanas houve no salão dos soldados da paz como foi já aludido, a partir de hoje na sala maior da junta de freguesia, a quem saúdo sua excelência o seu presidente que fez o favor de fazer a indispensável cedência, cuja feita foi muito à medida de visíveis e assinalados altruísmos, aqui relatados para que conste.
Estando toda a junta ali disposta e reunida, formando uma diagonal entre a porta e a mesa, agora mesmo vai falar o presidente, com os preceitos de um discurso introdutório otimista, dando jus às inequívocas solidariedades dos eleitos do povo e, como disse e repetiu duas vezes, na justa e merecida medida de ser este um serviço público genuíno, que serve aos fregueses de qualquer parte do país, que, como podemos testemunhar, vieram de desiguais povoados e condições, unidos por um objetivo comum e transversal: ajudar e ser ajudados.
Esta é a missão que cabe à nossa meritória equipa, continuou, mas permita-me que muitos mais e incomensuráveis méritos reconheça a vossas excelências, que, indubitável e incansavelmente dirigem e orientam os trabalhos, que vão desde os centros de saúde aos hospitais e aos lares da nação; ao presidente da associação de familiares e amigos e restantes elementos da sua equipa diretiva, à excelsa parte técnica que inclui a medicina, a psicologia e a assistência social se aqui estiver e, por extensão, a todos vós: a junta é de todos, disse.
Dispensou o presidente de mencionar os nomes dos risíveis membros da junta, pormenor que nos pareceu injusto, quase todos presentes e muito encostados uns aos outros, apetecidos de saberem quem são os autoajudas ali sentados na frente de uma mesa onde fora colocada um arão de tulipas brancas e negras sobre uma toalha vermelha debruada a ouro.
O leve desencanto dos olhares que tentavam conferir, em vão, elegâncias desfiguradas, eclipsou-se quando se começou a perceber que esta seria uma reunião de familiares e amigos todos adultos e que, conforme toda a evidência científica demonstrada, não era adequado supliciar as infelizes com os relatos que certamente ocorreriam, todos acusatórios e isto aqui não é um tribunal, a todos um bem hajam: a palavra a quem quiser, disse o presidente da mesa, constrangido de tanta intrusão, dispensamos apresentações.
Demais, todos nós podemos ajudar, a cada filho caberá um pai e uma mãe, nem sempre se sabe quem é filho de quem, não foi esta a educação que eu lhe dei, sabemos nós muito pouco do que nos reserva o futuro: ao mundo damos filhos com a melhor das intenções, ao mundo entregamos ideias e condutas, civilidades e paixões e penas duras a ver se nos servem na ilusão de vencer os meses e os anos desta tempestade, disse o primeiro pai que falou, reconhecido como um novo membro da associação, destes intrusos que dão testemunho queremos nós, olhado por todas as quarenta e oito criaturas distribuídas, simétrica e jesuiticamente, no espaço, umas com olhares de desdém e outras de compaixão consoante os impulsos das subjetividades.
Falara e pouco queria dizer, a isso o impelia o aglomerado da autarquia, que, teimoso e deseducado, ali permanecia sem arredar pé. Que se soubesse, ninguém do setor político ali introduzido apresentava estatuto nem aparência de quaisquer tipos de anomalia. Bastava a exposição aos olhos daquelas mulheres e homens inquisidores, elas e eles na orla da meia idade da vida. Os mais velhos ficaram em casa, alguns rezam, outros praguejam.
Ninguém da mesa apresentou ostensivamente o locutor primeiro nem os que se seguirão, não apenas por ser regra não escrita mas aprovada da nova congregação da cidade e do país, mais ainda justificada pelos respeitos e escrúpulos devidos a este progenitor vetusto de convicções, deve ser divorciado ou será que é pai solteiro, proliferam as famílias monoparentais, não houve detalhes que fossem além do homem que se mostrava e de quem foi dito somente que é um novo membro, que ficou em poucos segundos com o microfone molhado, o suor a escorrer, não era preciso expor assim o lenço anónimo e enrodilhado que saltou do bolso saltou numa obediência condoída: os dois, lenço e homem, alimparam-se.
As rugas mostravam um homem amadurecido. De idade, conforme o angulo de visão.
Tem a sua idade, foi o comentário mais geral das mulheres, baixinho, elas que ligam menos à idade dos homens e mais reparam na sinalética dos dedos: não há aliança nem marca dela nos dedos, há muitos casos de divórcios entre nós aqui metidas neste barco de tempestades.
Pôs-se a pensar naquela aventura carnal de quando no fim do feliz acaso acontecido lhe foi perguntado em modo afirmativo: o senhor é velho, não é; sim, eu sei, e tu quanta idade tens para apresentar: eu tenho trinta e cinco; olha que também não és uma pessoa nova, tive eu resposta física e emocional inadequada, inquiriu; que não, que antes pelo contrário, que para pessoa de idade estava muito bem, que sua mãe devia ser adorável. Pensou em dona Maria Ana e nas mulheres da noite. E da vida.
Alguns homens queriam fumar e abreviar a reunião de início ao fim, atalhar: para quê expor as misérias da casa, mas a meia centena de criaturas ignorantes do homem novo que ali estava pela primeira vez compreendeu o sentido da palavra tempestade.
Era impossível não reparar no último homem admitido na associação, que se apresentava exatamente como novo quando na verdade rondaria os quarentas e muitos: tão jovem para uma vida por viver, tão velho para o mercado de trabalho, tão moço para sofrer abandonos do sistema securitário e mui a caminho da idade que dizem terceira: breves sussurros que não puderam ser percetíveis por outrem além da voz sombria que aqui se apresenta e que bem podiam os rumorejos ser objeto de reflexão dos amantes da filosofia social: o que é isto de ser velho.
Conceito disparatado, segundo a ilustrada observação do filósofo que entende estar esta trama sob a alçada mais da sociologia cultural, ou que assim deveria ser, merecidamente ordenado e no campo certo, contradiz o economista social, que é no concreto pulsar da vida e nas suas contradições que reside o melhor de toda a filosofia.
Para onde vamos, sem suma, em envelhecendo: tema de tertúlia que tivera lugar garantido nalguma sexta aquando das antigas, pensou a voz sombria, no tempo em que a Antonieta enchia de orgulho o todo António no palco do velho grupo que a crise fez desvanecer.
Sem ouvir a voz, António estava a conciliar decisões do que havia de dizer em público, ainda com a carta no bolso que o doutor carvalho, o serafim, lhe havia entregue no dia da alta hospitalar, para ser entregue ao doutor da melhor especialidade do país, no hospital do centro da cidade grande, que nós aqui, senhor António, reconhecemos não sermos competentes no endireitamento de sua filha: procure pelo nome deste professor doutor e entregue esta carta expressamente emanada da minha autoridade, acreditamos que terá entrada imediata nos serviços de pedopsiquiatria, mas a miúda tem mais de vinte, sem dúvida que tenho de concordar, porém estes desajustes costumam acometer na imberbe juvenilidade e o meu ilustre colega ajuntará a pequena ao magote da pequenada, confie em mim e na minha humilde convicção de que não podemos neste instituto nem sabemos cuidar melhor Antonieta, e ela, como sabe, e este é o critério clínico oficial, recuperou cinco quilos, está nos admiráveis quarenta e um, embora suspeitos, suspeitamos que tamanha recuperação é própria de velhos truques de encarceradas neste manicómio, o que nós sabemos, disse-o a operacional e confirmou-o o doutor Santos, estes resultados foram obtidos depois do convívio com a Hermenegilda a transmontana, a quem a sua princesa se agarrou ao terceiro dia de reclusão voluntária; nem queria recordar o dia da correria junto à porta do hospital, a espera à entrada do edifício das reuniões, a saída apressada, quem o mandou aqui, nem um olhar de homem para homem pai, sempre em marcha acelerada, nem aquele tão esperado quem é o senhor nem de que sofre ela, faça se quiser o que muito bem entender, o que pode fazer é passar nos serviços, eu não sou nenhum funcionário, ou ligue para o meu escritório: não quero carta nenhuma.
Muito boa tarde senhor doutor, desculpe minha impertinência. Limpei o rosto no carro, passei nalguns vermelhos, fugi à polícia, escondi-me atrás dum camião, herói da cidade grande, a boca descolada da secura de um deserto urbano tão a pique e inclemente. Não, não posso dizer nada disto na minha vez, omitir, calar, mostrar a minha máxima e tão grande culpa, pedir opinião sobre o que já sei devo fazer. No centro da sala, sozinho no mundo.
Humilhação, Antonieta, o que tu me andas a fazer, acusou pela milésima vez.
Parece um poeta a falar em prosa, cochichou uma mãe aflita, que logo de seguida reclamou pragmatismo a quem houvesse de falar, que falassem para a gente entender, todos andamos a aprender, é para isso que servem as reuniões. Os senhores da junta que me desculpem, arriscou ainda a dizer, mas não deviam estar aqui, não há elos de ligação, os senhores percebem, têm algum menino ou menina metido na desgraça. O presidente da associação concordou, admirado, sem dizer palavra, limitou-se a sorrir delicadamente: o cortejo fez-se em retirada.
Falou a mulher baixa, a caminho da obesidade: ela nada queria testemunhar, a filha era o exemplo do estoicismo, depois de amarrada no hospital três meses a chorar e a comer, sim senhores e sim senhoras, a minha menina está a recuperar, estou muito feliz, e chorou copiosamente, sem forças para soluçar, era visível, e a todos os familiares e amigos correu rostos abaixo uma lágrima quente sob o impulso das gargantas entupidas: o médico falou de sequelas que eu não sei nem ele sabe, quero ajudar o meu homem a cumprir compreensões, que anda atrasado e em maré ainda de negações, eu vou na frente com a nossa bandeira, também temos a luxemburguesa, a unir os trastes das casa que temos lá e cá, a conquistar liberdades e direitos pró futuro do depois: o meu homem assentou-se no tempo, diz que só vem de vez quando for para a retraite, eu que me amanhe com a cachopa. Tem de ser. As sequelas é o que mais me doem, ando descompensada por nem as mulheres e os homens de morada aberta me dizerem tudo o que está por vir.
Seguiu-se um silêncio de granito por escassos segundos, o tempo de se assoarem alguns narizes e olhos, que não pôde continuar.
Para quem não sabe, a família vai-se reinventado e nada será como dantes, outra expressão de curto alcance para muitos e muita, muita complexidade, as lágrimas ali estavam num derrame agora compulsivo da mulher que acabara de falar, porém não pode a reunião ser um velório de carpideiras: vamos combinar que cada qual dê seu testemunho sem gemidos, sem acusações, nem espartilhos à liberdade de quem quer dizer os males lá de casa, isto disse o presidente da mesa e da associação de familiares e amigos.
Nada de choramingas, continuou. O meu filho anda na escola quebrado e eu estou aqui de pé, complementou a mulher coadjuvante na função da presidência: sim, não me vou demorar, esta perturbação não poupa os meninos desprevenidos, sobretudo os mais sensíveis. Este é um assunto de família, calou-a o presidente da associação com a voz que lhe era dada pela autoridade de esposo. Estamos aqui para ouvir e ajudar: ouçamo-nos ajudemo-nos uns aos outros.
São estas maleitas mais difíceis que as demais na óbvia medida em que não vos é permitido proibir a droga aos vossos famintos, e lançou um olhar acusatório como um veneno a pairar sobre o ar carregado de todos os que se sentiram suspeitos e culpados: finar-se-iam de fome verdadeira, ética e filosoficamente condenável; não são drogados, estão no meio termo, sentenciou o enfermeiro, termos repetidos pelo psicólogo da equipa interdisciplinar, amigo também da associação, claro que depende dos casos, contemporizou à guisa de conclusão o vértice psiquiátrico da sessão.
Que fale o catedrático, deixem-se de obviedades, a figura sagrada da nossa terra que diga ao que veio, não disse, mas pensou o António. Escutemos atentamente quem sabe.
António sabia-o, aquelas frases eram-lhe familiares, pareciam a linguagem simples e clara da Catarina, algo banal, idioma que não vem nos livros, vem do pensar simples e lógico, porém, a sua vida estava cheia de poréns, era composta de anacronismos e coisas ilógicas. Fazia-lhe falta ouvir as verdades mais que elementares, soltar o verbo que às vezes só os médicos sabem deslindar. Era catedrático do óbvio e sentia-se entre os doutores. Jesus.
Endireitou a cervical para aprumar a escuta ativa: escutar verdadeiramente a eminência, a vaca sagrada que só ele sabia tinha de saber mais e explicar.
A sociedade e o sistema político olham progressivamente apiedados para estes casos como se fossem vaidades de princesas desencantadas, mas as verdadeiras respostas estão nas universidades, em quem, minhas senhoras e meus senhores, devereis cegamente acreditar, começou por detalhar o catedrático, a transpirar sabedoria acumulada na coordenação dos estudos gerados, inerência da cadeira onde concreta e figuradamente se senta faz muitos anos.
O atual estádio da nossa investigação não explica tudo, ou quase nada dilucida, nós temos de nos concentrar nos casos de sucesso enquanto não há vacinas que remedeiem o querer, é uma espécie de terapia cuja centralidade está tanto no terapeuta que a ministra quanto no recetor da dita, torceu o nariz e desenhou um esquema diante da assembleia: uma criança só aprende se quiser aprender, um paciente será tratado na exata proporção desse mesmo querer, uma e outro dependem da vontade e da querença. Segundo o atual estado do conhecimento, salvaguardou.
Depois há os céticos, e por isso os estudos são inconclusivos, há os que dizem que nem sempre a chave está nos quereres, que há os fatores de predisposição genética e nunca mais param de discutir.
Deixem essa parte para quem sabe contestar: há inúmeras variáveis a deslindar.
Aos pais e amigos cabe compreender, dar o exemplo e deixar a medicina fazer o seu melhor. Estamos todos a aprender, não há unanimidade nos procedimentos clínicos, uns querem famílias alargadas e vizinhos comprometidos, outros aqui pugnam por ausências e expelem intrusões e todo o tipo de intromissões e apostam na mais apurada farmacologia, outros ali defendem equipas muitos alargadas de técnicos centrados em técnicas mistas de intervenção dentro e fora dos hospitais, outros acolá advogam o isolamento total como se as meninas infetadas por esta morbosidade mental sejam uma ameaça à saúde pública, mas todos, isso garanto eu, absolutamente todos, queremos tratar direito ainda que por diversas e contraditórias terapias, como fez deus quando resolveu escrever direito por linhas tortas, o que importa é aonde se chega, os objetivos que cada qual tem na sua preciosa vida, e estas foram as achegas do doutor dos soerguidos e valorosos ombros, com os olhos e as sobrancelhas a dominar o espaço, asserções que julgava definitivas na noite desta sexta cujo tempo corria abstrato mas inexorável como costumeiramente.
Não se mordeu o catedrático das contradições em que tombou inevitavelmente, mas teve o mérito de deixar António abraçado à ideia de que a criança só aprende se quiser aprender, o problema central da vontade e da querença, vou esperar pelo querer de Antonieta, indignou-se.
E não parava de cismar: mas este é só um vértice do triângulo, onde está a empatia do técnico assistente, as tais sessões de família têm utilidade, o meio socio afetivo, a envolvente ambiental, o círculo das relações interpessoais, o que tem a dizer a genética, quantos anos duram estes assuntos da mente, há casos crónicos ou há incompetência na abordagem, e não parava de se interrogar, até que concluiu: o catedrático simplificou, e decidiu: em terra de cegos quem tem olho é rei. Estamos feitos se o nosso rei vai nu.
O rei vai sempre nu, recordou, apreensivo, o ceticismo cismático de Madalena.
Quase todos gostaram do que disse o doutor dos altos e catedráticos ombros, a vaca, com licença, sacrossanto animal de ciências quase exatas, sobretudo gostaram da parte que menos se percebia, crédulos no desejo de terminar a tragédia, firmes na ignorância das linguagens de elite conformadas e que falam bem quando a fala não se compreende. Que bem que falou o senhor professor: é sempre assim nos colóquios e nas conferências.
Todavia, a noite desta sexta vai adiantada, mas recusa-se a ficar por aqui, havia urgências na sala e pedidos de palavra que foram atendidos.
Foi então a vez de falar um homem alto e magro, sem emblemas nem dísticos para apresentar, comido de preocupações, conhecido mas ainda um debutante nas reuniões da associação, numa voz macia e sensual, quase erótica, há muitos anos a beber com a doença em casa: sim doutor, a gente ouviu tudinho e entende tudo aí, mas o meu caso é um poucochinho diferente e mais aflito dos demais, me perdoem: minha mulher se arremete contra toda a gente da casa, nossa, meus dois filho homens incluídos, um dezanove o outro anda nos vinte e um; põe colante de fotografia dela redondinha, não gorda, me entendam, para se lembrar no abre-e-fecha-geladeira de sua antiga carinha bochechuda, que eu tanto amava, se amava minha nossa senhora, e só quer sua atual, derretida.
Está ela se derretendo sempre, não sobra nada, sabe, doutor, uma mulher de quarenta e cinco aniversários devia ter mais juízo, está maluca da moleirinha, não tarda nada e não serve sequer para transa, não acham gente, me perdoe a ousadia de dizer o que penso e sinto. Todos acharam e sentiram, sobretudo a cara daquele homem ossudo e grisalho, na roda dos cinquentas, mas um leve sorriso irónico de gente experimentada escapuliu-se-lhes dos lábios, menos do presidente da mesa circunspecto e do doutor mais importante da sala.
António levantou subitamente o braço, também queria falar, dizer de suas arreliadas justiças, suas sentenças. Rebentava se não falasse. Tinha consciência que papagueava muito, a noite toda se o deixassem, com frases esdrúxulas, estapafúrdias, eloquentes e arrepiantes estafando as atmosferas, mas aquele levantar de dedo como um escolar de instrução básica, um aluno antes do antigo liceu, parecia a toda a gente reunida que vinha aí assunto rápido e sério, como se dos outros familiares e amigos não sobrasse mais que um sorriso traiçoeiro, escapado ao querer, falou e se equiparou a um homem sem abrigo, cruzes, inútil teatralidade:
senhor doutor, com sua licença, e isto é para todos, se me puderem ajudar: tenho a chave da despensa comigo, não sobra nada no frigorífico, trabalho muitas horas em cada dia, organizo a vida na casa onde vivo durante a semana com a minha filha, todas as refeições controladas, a chave sozinha comigo senhor doutor, é correto.
Decerto não, não há certezas, quer dizer não é a melhor opção, o senhor que está no estágio há muito tempo, que tem experiência, sabe que a despensa fechada não contribui para a sua saúde, nem de ninguém. Lembra-se, uma vez, aquando no congresso em que também participou, se falou da possível terapia familiar, falou-se disso e o senhor reconheceu que já havia feito a experiência de fechar tudo à chave e de nada lhe valia. O senhor continua arreliado, há quantos anos.
A vaca sagrada, ruminou António, esforçou-se em ainda mais tamanho de ombros para acrescentar que hoje as famílias compram e compram, enchem os frigoríficos e arcas e as despensas, quando aquilo que deveriam fazer era tão só comprar no quotidiano dos dias, uma forma de dizer escassamente, como no tempo da mercearia.
Nesse congresso, a que muito dificultosamente fora acompanhado, temos de aprender, foi o que dissera para convencer Magdala, cresceu o laivo da suspeita em crescendos imparáveis, como se ela e com ela ele vissem o outro lado da verdade, ceticismos que se cristalizaram quando alguns entremetimentos do doutor foram percebidos como um claro julgamento familiar, uma simples e indefesa família que ali estava, exposta e injuriada frente aos espelhos do supermundo dos congressos; e muito em particular se sentiu Madalena acusada e condenada no tribunal privativo deste instituto público a que chamaram congresso de terapias adequadas ao tratamento de comportamentos perturbados: se se justificarem as terapias de grupo, havendo condições logísticas e de pessoal especializado, com os aprendentes, com tudo, toda a família nuclear será obrigatoriamente convocada. A senhora precisa de terapia familiar.
Nesta regra elementar da função congressista, violada, embora a montante de quaisquer convocatórias, por enquanto mera partilha de opiniões e recomendações, como se viu, na mera possibilidade enfim de a família ser obrigatoriamente convocada, viram os circunstantes mais atentos todos os atalhos que levam à culpa: como pesa o pesado complexo da culpabilização.
Nas consultas e nas sessões há diferentes procedimentos, minha senhora, não fale para o lado, agravou o congressista, a família tem graves responsabilidades na educação dos filhos, nisso há um assentimento geral, e toda a parte técnica do congresso abanara com a cabeça que sim.
Juro que nunca mais me levarei nem me levarás a qualquer assembleia ou associação de esquizofrenias: viste como todo ele, o dos ombros mais altos, se contorcia, talvez para se impedir de soltar as garras da sua morada aberta de lobisomem. Não, Maria de Magdala, não te deixes encurralar e aceita de uma vez por todas que o distúrbio entrou na nossa casa, nas duas casas, e todos estamos perturbados, todos, menos tu. Tu estás sarada, Maria de Magdala.
Decerto, ensimesmou prontamente, na concha do seu condomínio fechado, se fosse no consultório particular verteria outras falas mansas, não o disse explicitamente, mas julgou.
Não gosto deste homem, repetiu o ensimesmamento. Nunca gostei de médicos, abjuro os psiquiatras que à face da terra servem para prescrever remédios, pelas minhas goelas abaixo nunca as farmacêuticas subirão negócio: até me dá tremuras só de pensar que respeitáveis multinacionais do setor andam a retardar nos laboratórios o tratamento da sida em ordem ao maior número possível do lucro, sabias da cumplicidade de médicos alemães no programa de extermínio judaico; põe-te fino, eles são, olha nos olhos deles, ou ficam a sê-lo em geométrica progressão, mais loucos que os destrambelhados enlouquecidos, tanto que ainda há pouco vi na televisão que quem entra nesses hospícios sai de lá, quando chega a sair, entorpecido: tudo soprado aos ouvidos atónitos e céticos de António. Estais todos loucos.
Tens a mania que sabes tudo, depois dás-me razão. Se eros fosses tu, mulher, estava eu contaminado de paixões irracionais contra a medicina. Inquisições, basta de opiniões por fundamentar, cuidemos da bílis antes de regurgitar o que vem à língua, se é que me estou a fazer entender.
Se a fel me comparas e assim amostras menos prezo, sabendo como toda a gente sabe que não é doença, que de loucura se trata, para que vim eu ao congresso; ato contínuo, arrebatada, saiu possessa de doideira, endemoniada.
Senhor doutor, mas eu já compro no dia-a-dia, interrompeu, naquele palco da junta de freguesia onde estava reunida a assembleia dos familiares e amigos que se queriam auto ajudar, ou tentar ser moletas uns de outros e outros de uns, que o mesmo era dizer: ajudem-se ou amem-se uns aos outros como eu vos amei, e insistiu: vou logo de manhã ao minimercado e trago coisas mínimas, ela tem de comer, como disse e muito bem, por exemplo compro quatro iogurtes magros que é o mínimo que se pode comprar, vou na mercearia do lado, e um pacote de bolachas de água e sal. Não há bolachas avulso.
Então, o senhor compre só de semana a semana, em vez de mês a mês.
Todos os dias doutora, pensou num palavrão que não pronunciou, ninguém ouve o que eu digo, também havia uma doutora de clínica geral, e quando chego a casa já não há nada, salvo a fruta e o sumo, as bolachas, o pão e o vinho da despensa fechados à chave.
Compre então a meio da semana, também, em vez de comprar tudo ao sábado ou à sexta, menos à sexta e mais a meio da semana, e se fosse eu a si abria de novo a despensa, rematou a vaca com todo o respeito pelos animais e pelas pessoas e com um ar de profunda cortesia e compaixão.
No salão da senhora junta, gentilmente cedido à associação, o doutor não o ouvira, tão pouca a doutora, talvez ninguém houvesse ali disposto a testemunhar, ou a ajudar, o não o terem pelo menos entendido era evidente. Para se justificar, acrescentou que não estava ali para dar consultas particulares, pérola que gostava de desperdiçar, sobretudo agora dirigido aos pacientes em fase de começo, quase todos associados por interesse próprio nesta meritória associação que promove reuniões e discussões quase sempre em regime de autoajuda, quase como nos alcoólicos anónimos também descompensados: quase ninguém saía dali ajudado, havia que beber mais um trago e outro e outro até ao alcance da luz, antes do precipício.
Elas falam de suicídio, camarada, vamos a beber onde calhar e conversar, um modo de chantagem, elas falam de violências e de morte, deixam de se dar como deve ser, a quase todas falta-lhes a coragem, a maioria cala e mitiga a desgraça, deixam de se dar, repetiu, o silêncio mora sob os lençóis da minha cama. Qual é a sua graça, esqueceu-se de perguntar.
Mas ali, que se soubesse, ninguém era acusado de alcoolismo, nem o doutor, e o doutor bebia, oh se bebia, comentou-se no breve intervalo, interações que sempre se dão e de que nem todas se sabe, saberes e maldades que se partilham fora do programa formal. E havia nomes que se articulavam, isto depois da pausa para arrefecer ânimos quase exaltados: esta gente é muito desagradecida. Seriam também eles todos doentes, os do corpo técnico do país, aqui deve pensar-se todas as categorias da burocracia pública e privada, sabido é que proliferam todo o tipo de doenças pelo país e pelo mundo, tição atirado para o ar pelo cidadão luso-brasileiro que ali estava por si e pela sua conjugue, a tal que comia e andava a derreter. Perdeu o apetite até de fazer aquilo que todo homem e toda mulher fazem, isso é de gente. É normal camarada, como me chamou também lhe chamo, elas põem a doença acima de qualquer transação, iremos a um copo pela noite dentro na cidade.
Analisados mais de perto, ainda sem a lupa sociológica, que recorre à rede complexa das interações grupais, formais e informais, familiares e de natureza mais alargada, sem sondagem ao eu com o eu antes e depois do eu com o outro, não se tratava de uma autoajuda qualquer na busca do milagre divino e medicinal para sair ileso dos acidentes familiares.
Comtemplando os dali reunidos na junta, perdoe-se a repetição com outras palavras, eram quase todos simples sobreviventes de um naufrágio atroz, agitado, arrastado a passo lento. Os passos da cruz que ninguém quer na biografia da condição hebraica: judeu errante, machado de. Assis.
Lembrou-se do homem que escreveu a poesia da tragédia humana, não pela especial inclinação das letras daquelas partes do hemisfério sul americano, mas uma quase homenagem ao homem lobo cuja mulher adulta anda em processo de se comer em se derretendo. Espreitando a fome na casa duriense donde se dizia: a fome, amigo, não é coisa que se torne pública.
A bem dizer não é fome de comer, são mais as dores de fados maiores perdidos: os meninos sempre a crescer, já amadurados e a não lograrem os desfrutes das liberdades sequer mínimas, sem meditar nas inteirezas prometidas de mulher e mãe. O senhor há de concordar com as minhas bebedeiras, um homem tem de mitigar a supressão do amor, deitar-se na frágil cama como se fora no melhor colchão.
No fim da noite bebeu-se mais um copo à poesia de ambas os países, que saudades das gentes pernambucanas e nordestinas, senhor António, e brindou-se uma vez mais à enciclopédia luso-brasileira. Betânia, caetano, amado, fagundes, machado e holanda o chico, lula a estrear-se no palco do mundo, não foram esquecidos: com o último trago subiram e baralharam os nomes do culto à beira rio da cultura, num oceânico jogo de evocações e transmutações de portugueses espanhóis e ameríndios europeus.
Os passos de ambos já lhes haviam sulcado a vida, havia mais de dez anos que em comum contavam, a comemorar nesta noite errante e aquecida neste afã de mais um copo mais e outro e outro mais a ver se passa, a ver se diminui a extensão de cada ferida, a examinar os projetos da desesperança e da soledade, a ver se diminuem as provações a partir do nosso primeiro dia, senhor Bruno com cara de Pernambuco.
Com desatenções às rugas da alma, um abraço senhor António, foi bom abraçar você.
Que belo rapazinho seria se, em vez da perturbação que lhe calhou em maré de desfavorável catadura, fosse um filho novo que viesse, agora pensava num rapazinho, à terceira é de vez: com a vida dos seus dez anitos, podia ser que insuflasse vida à filha que morria, insistia, morria. Pensou incomodar Maria de Magdala, era tarde, mas queria espreitar a lua, a ver se do amor incomodado nascia um filho: ela dormia imperturbável, ele agarrou-se ao sono profundo da almofada, espreitava ele, o dia.
Ele era impotente na sua potência irreparável e comprometida. Todos eram fracos antes da impotência, até o doutor e todas os homens e mulheres sábios do planeta sabiam que nada sabiam ou, o que era mais grave, pouco sabiam acerca das ignorâncias espargidas pelo mundo.
Era ainda uma pergunta, uma dúvida, uma réstia de esperança: o mundo está cheio de certezas, desconfiou, no mais profundo silêncio agora ouvido e compreendido: ressonância da vasta sala da freguesia. Acordou e verificou que sua virilidade não estava comprometida e que valeu a pena a tertúlia noite adentro.