Opinião
Opinião: Vamos falar do medo
O medo é uma das cinco emoções básicas comuns a quase todos os animais, tal como aos humanos. É o medo que nos permite agir em situações de perigo e ameaça e, desta forma, sobreviver. Este tipo de medo, não só é inato, como é absolutamente necessário à nossa sobrevivência. Não é, porém, deste medo que me apetece falar. O medo sobre o qual é importante refletir é o outro, aquele que é aprendido, ou seja, aquele que nos é ensinado.
Vale a pena reflectir sobre esse medo uma vez que, tendo essa capacidade, poderemos agir sobre ele de diversas formas. O medo foi sempre, ao longo da nossa história, uma arma política, tal como muito bem explicou, em diversos dos seus livros, Hannah Arendt, uma das maiores pensadoras políticas do séc. XX, ou mesmo Viktor Frankl, o fundador da logoterapia. O medo é uma emoção muito perigosa, especialmente porque é extremamente eficaz e porque, acima de tudo, causa uma falsa sensação de segurança e de autocontrolo. Não será, por certo, por acaso, que continua até hoje a ser usado como estratégia política.
O medo causa nos humanos uma noção de limite, de segurança e de capacidade de controlo. É este canto das sereias que alimenta o aplauso generalizado da pedagogia do medo, mas é importante entender os seus efeitos. Este medo, aquele que é aprendido, gera comportamentos condicionados inconscientes. Todos nós nos lembramos das experiências psicológicas sobre o condicionamento de comportamentos em animais, e nós? Não nos deveríamos questionar quando desenvolvemos comportamentos condicionados por este tipo de medo? O problema é que a origem destes comportamentos é inconsciente e mais, estes comportamentos dão-nos a tal falsa noção de segurança e controlo.
O maior risco do medo é que, apesar de ser altamente reconfortante e de nos dar a sensação de controlo, ele é um poço que se cava cada vez mais fundo e de onde é muito difícil sair. Com o medo acontece o mesmo que se passa na fábula do rato no frasco com sementes. Quando um rato é colocado num frasco que se encontra cheio de sementes, ele terá uma sensação de completa satisfação das suas necessidades e não irá sequer avaliar outra alternativa. O rato irá ali permanecer alimentando-se dessas sementes e só quando as sementes acabarem é que irá perceber que morrerá de fome, uma vez que já não conseguirá sair do interior do frasco. Esta é apenas uma fábula, mas é importante entendermos que não somos ratos, logo devemos ser capazes de elaborar outra e bem mais aprofundada análise da realidade.
Poderíamos achar que os humanos são livres para aceitar ou não o medo e fazer com ele o que quiserem, mas isto não é, infelizmente, verdade. Ter essa liberdade implica uma enormíssima capacidade de reflexão, com grande conhecimento temático, disponibilidade intelectual e capacidade cultural. Quantas pessoas reúnem essas condições? Não é por acaso que vimos nos últimos anos quase um país inteiro a aplaudir de pé a política do medo que nos foi imposta.
Não sou adepto de teorias da conspiração e, por isso, não irei lançar esse anátema sobre a Direção Geral de Saúde e o Governo. Vou, deste modo, aceitar a origem benigna da sua conjunta atuação, acreditando assim na genuína bondade das decisões tomadas e que estas foram de facto aquelas que as autoridades competentes acreditaram ser as melhores para a grave situação que atravessámos. No entanto, tudo isto encerra um problema de fundo completamente insolúvel. As decisões individuais, por mais importantes que sejam, jamais terão a relevância das decisões colectivas do Estado, daí que a essas deverá ser sempre exigida uma reflexão prévia, bem como uma fundamentação incomensuravelmente superior às decisões individuais.
Reconheço o facto de todos nós, incluindo o Estado, termos sido apanhados de surpresa, e que uma resposta urgente se impunha, mas, mesmo que a abordagem inicial pudesse não ter sido a mais adequada, houve mais do que tempo para corrigir o rumo e perceber que a pedagogia do medo não podia ser o caminho. Nada disso foi feito, quer por parte dos nossos eleitos, quer por parte das nossas autoridades de saúde. Poderemos sempre dizer que “os outros também seguiram caminhos semelhantes”, mas nem isso é verdade. Houve “outros” que seguiram caminhos diferentes e muitos “outros” que, tendo inicialmente seguido caminhos semelhantes, foram progressivamente abandonando a estratégia do medo, deixando-nos hoje a integrar um minúsculo reduto de países onde esta política se mantém.
Será interessante perceber quais os países que, desde o início, geriram a crise sem recorrer ao medo e quais aqueles que, mais rapidamente, abandonaram esse rumo e, já agora, comparar quais os indicadores sociais em que o nosso país mais se afasta em relação e eles. Penso que se poderão tirar conclusões bastante interessantes e que poderão explicar o tão generalizado aplauso que o nosso povo tem dado à gestão de tudo isto. Fica apenas esta singela sugestão.
Voltemos novamente ao medo. O nosso Estado não só agiu mal como nem sequer teve a capacidade de prever os efeitos psicológicos devastadores que se iriam verificar. O medo pode dar a tal falsa sensação de segurança e de controlo, mas destrói, destrói por dentro, destrói o que temos de mais nosso, a verdadeira liberdade. As consequências psicológicas destes anos não ficarão apenas no brutal sofrimento que se verificou durante este tempo, estas consequências ficarão marcadas em cada pessoa, no seu interior e no seu comportamento, por muitos anos. Quem será o responsável por estes danos irreparáveis?
O Estado invadiu tudo, inclusive a forma como as pessoas vivem a expressão dos seus afetos e a sua forma de cuidar. Pela primeira vez na história moderna foi-nos dito que os doentes deviam ficar sozinhos, isolados. Há muitos meses o meu filho teve Covid e esteve bastante aflito. Eu, como bom cidadão que sou, cumpridor rigoroso das regras e normas do estado, deixei-o doente e sozinho algures num qualquer apartamento em Lisboa. Na altura, apesar de ter sentido alguma inquietação interior, não me questionei. Cumpri o que me era exigido, sem sequer ter questionado o meu comportamento ou a legitimidade do Estado de impor condições à expressão de afeto e à forma de cuidar de uma pessoa que amo. O rapaz felizmente lá recuperou, mas eu não. Com o passar do tempo, o que foi crescendo em mim foi um sentimento de culpa por não ter estado ao lado do meu filho quando ele precisou de mim.
Compreendo hoje muito bem este sentimento de culpa e sei que nunca irei ser capaz de me perdoar por não ter violado aquele normativo de “isolamento profilático” e ter estado mesmo ao lado do meu filho quando ele precisava de ajuda. O Estado não tem este direito, não tem mesmo. Os doentes não se abandonam. Não é nos momentos de maior fragilidade que as pessoas são abandonadas. Aliás, até hoje, esta foi a primeira vez na história moderna, repito, que isto aconteceu.
Sempre se cuidou das pessoas doentes e estas nunca foram abandonadas. Lembro-me inclusivamente de alturas em que se colocavam os irmãos juntos de outro que estivesse doente com uma qualquer doença contagiosa para que ficassem todos doentes e assim ganhassem imunidade a essa patologia. Claro que não estou a defender retrocessos médicos, mas sei que o medo não é uma medida de saúde pública. Se isolar, evitar, proteger ao limite fossem medidas socialmente aceitáveis é evidente que os números das doenças infecciosas diminuiriam, mas a que preço? Vamos deixar de comer porque podemos apanhar uma intoxicação alimentar? Vamos guardar as crianças em casa e evitar que vão para a escola porque podem apanhar varicela com as outras crianças? Vamos deixar de…..?
Até hoje, e o nosso país é um excelente exemplo disso, tivemos a prevenção das doenças muito baseadas em medidas vacinais, com taxas de sucesso elevadíssimas, mas o medo não fazia parte desta equação. Aprendemos a conviver com a imponderabilidade das situações, mesmo que fôssemos ficando doentes de vez em quando e que algumas ou muitas pessoas morressem todos os anos com uma ou outra doença infecciosa.
As nossas entidades de saúde, como o Instituto Ricardo Jorge, iam fazendo diversos relatórios sobre várias doenças e, apesar de serem públicos, quem os lia? Quem noticiava esses números nos meios de comunicação social? Como já referi antes, quero acreditar que a diferente estratégia adotada para lidar com a Covid tenha sido fruto apenas de incompetência, inabilidade e incapacidade de prever as nefastas consequências geradas, nomeadamente as psicológicas.
Chegados a este ponto, fazemos o quê? Coletivamente, pelos vistos a única coisa que conseguimos fazer é, apesar de estarmos hoje, este minúsculo rectângulo, com pouco mais de 10 milhões de habitantes, a ser praticamente a exceção mundial que continua a alimentar o medo, continuarmos a apoiar as medidas restritivas que ainda existem, e mesmo a pedir que regressem outras que, entretanto, já caíram. Individualmente, eu, e cada um de nós, pode e deve refletir sobre tudo isto e tomar decisões, mesmo que sejam contra normativos legais ou orientações das autoridades de saúde, nos casos em que sintamos que algo fundamental em nós está a ser atingido.
Esta é a minha reflexão e eu não tenho a menor pretensão de ter razão e muito menos de convencer ninguém ao que quer que seja, mas uma coisa também é certa, não impondo a minha opinião a ninguém, também não admito que ninguém critique a minha, e muito menos que tentem lançar sobre mim qualquer sentimento de culpa.
Não vou mais permitir que o Estado, pelo medo, condicione os meus comportamentos. Irei, sempre que considerar aceitável cumprir a Lei, mas não mais que a Lei. Não darei um só passo que seja que vá para além da Lei e, se voltar a ser necessário, por Covid ou por outra doença infecciosa qualquer, jamais voltarei a aceitar a imposição de um isolamento profilático e estarei, evidentemente, ao lado do meu filho ou de qualquer outra pessoa que ame, mesmo tendo a noção de que posso ficar também doente e eventualmente até morrer. É assim que socialmente nos organizamos, é esta a forma natural de nos relacionarmos. Ao Estado cabem imensas funções, mas não lhe cabe intrometer-se na forma como as pessoas se relacionam entre si e como os seus laços afetivos se desenvolvem.
A propósito desta intromissão do Estado, fundada na cultura do medo, durante imenso tempo, demasiado, dado que jamais deveria ter ocorrido, as pessoas foram proibidas de visitar os seus familiares nos lares, ou outras instituições de acolhimento, e também nos hospitais. Nem que tivesse sido necessário ir de escafandro, mas esta proibição teve um único nome, tortura. Quem não passou por isso fará uma pequena ideia do que é estar numa situação de absolta fragilidade e sofrimento e não poder ter quem ama ao seu lado? Quantas pessoas foram obrigadas a morrer sós, sem ter quem lhes segurasse a mão? Eu sei que não pude e não posso mudar a Lei, mas posso ter opinião sobre ela e não a cumprir se for capaz, nos casos em que direitos privados fundamentais estejam em causa.
Não é a primeira vez que se elege uma doença para ter sobre ela uma estratégia radicalmente diferente de todas as outras. Não me querendo desviar da questão do medo, já houve um momento em que a estratégia não foi o medo, como agora, mas sim a culpa e a estratégia resultou. Resultou de tal forma que passadas já várias décadas a culpa continua a pesar sobre a cabeça de cada infectado, quase como se de um castigo divino se tratasse. Já para não falar de que, agora mesmo, com mais uma nova doença infecciosa que surgiu, se estejam a ensaiar, mais uma vez, posturas oficiais absolutamente criminosas.
Em conclusão, a liberdade será sempre a resposta ao medo, mas a liberdade não é, evidentemente, fazer-se o que se quer, e muito menos uma atitude irresponsável em relação ao risco ou mesmo temerária face à ameaça. A liberdade resulta de uma profunda e informada reflexão e uma recusa do medo como condicionador inconsciente dos nossos comportamentos. A liberdade implica aceitar o risco, ter consciência dele e, mesmo assim, viver, mas viver de forma livre.
Mário Ferreira
Professor