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Ílhavo: No prato dos portugueses, “pode faltar tudo, menos o bacalhau”
O bacalhau, rei e senhor da gastronomia portuguesa, é uma bandeira cultural e identitária. No universo deste pescado, o bacalhau proveniente da Islândia vai ganhando mais adeptos no nosso país e as empresas já têm os stocks cheios para o período do Natal. Ílhavo, o cluster da indústria transformadora de bacalhau em Portugal, é uma centralidade de negócios, mas também de chamariz turístico, à conta daquele peixe que convida a sentar à mesa, de faca e garfo na mão.
O bacalhau do Atlântico Norte, tecnicamente designado por Gadus morhua, é o mais consumido em Portugal e faz parte da identidade nacional. Junta à mesa famílias, amigos e desconhecidos, é prato obrigatório em celebrações festivas como a Páscoa e o Natal, é tema de conversa pelo seu inconfundível sabor e as propriedades nutritivas que contém tornam-no um alimento saudável.
A centralidade que o bacalhau ainda hoje assume na identidade portuguesa não se desvanece pelo facto de, por exemplo, Portugal ser ignorado no livro “Bacalhau – a história do peixe que mudou o mundo”, escrito em 1900 por Mark Kurlansky, ou pelo facto de a última frota de bacalhoeiros portugueses ter sido enviada para a Terra Nova em 1974, coincidindo com o fim da ditadura de Salazar, depois do regime do Estado Novo ter usado o bacalhau como exaltação patriótica de façanhas nacionais só possíveis com os mais bravos e estoicos portugueses. Bem pelo contrário. A centralidade que o bacalhau continua a assumir na identidade portuguesa mantém-se e é herança de um passado longínquo. Como anota Álvaro Garrido, historiador e professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, autor de vários livros sobre a história e a relação de Portugal com o bacalhau, presume-se que os portugueses já consumiam o fiel amigo na Idade Média e que os portugueses estiveram envolvidos na descoberta de “rotas mercantis rentáveis e regulares para satisfazer interesses capitalistas”.
Portugueses são os maiores consumidores de bacalhau por pessoa
Portugal é, hoje, de acordo com as estatísticas da FAO – Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura, o país que, per capita, mais consome peixe na União Europeia e que está em terceiro lugar do ranking mundial do consumo de pescado. Em 2020, em média, cada português consumiu 59,9 quilogramas de peixe, ou seja, 2,5 vezes mais do que a média registada na União Europeia. A grande maioria desse consumo de pescado é bacalhau. Nuno Araújo, Administrador da Grupeixe, uma empresa da Gafanha da Nazaré, que detém a maior quantidade de bacalhau da Islândia em Portugal, diz que “Portugal consome entre 65% e 70% de bacalhau por ano, o que equivale a entre seis e sete quilos de bacalhau consumido per capita”, confirmando que “somos os maiores consumidores de bacalhau por pessoa”.
Sendo o Natal a época de maior procura e de maior consumo de bacalhau, a Grupeixe já tem “armazenadas, para disponibilizar ao mercado, nesse período festivo, cerca de mil e quinhentas toneladas de bacalhau da Islândia”, das quase três mil que importa, anualmente, daquele país. As estimativas indicam que “só na noite de consoada e no dia de Natal, os portugueses consomem quatro a cinco mil toneladas de bacalhau, o que equivale a cerca de quatrocentos gramas por pessoa”, enfatiza o CEO Nuno Araújo. Esse peixe, que vai chegar à mesa dos portugueses em dezembro, já foi comprado à Islândia entre janeiro e maio passado, porque “são precisos entre sete a nove meses, desde que o bacalhau islandês chega a Portugal em contentores refrigerados, até poder ser servido no prato dos portugueses”, esclarece o responsável daquela empresa bacalhoeira. Todo esse tempo é determinante para “refinar a qualidade do bacalhau” que, uma vez chegado à unidade fabril portuguesa, é mantido em sal para ganhar mais cura, é lavado em água salgada, é desidratado, passa por um período de descanso e por outro de remoção de todas as impurezas, até entrar nos secadores, onde fica entre 80 e 140 horas, sendo finalmente embalado para venda.
“Os portugueses gostam muito de bacalhau porque foram habituados a ele, cresceram a comer bacalhau”, afirma Carlos Santos, cozinheiro há vinte anos, responsável pela confeção dos pratos no restaurante Duna do Meio, na Gafanha da Encarnação. E dá o seu próprio exemplo, de alguém que nasceu “numa casa com doze irmãos e podia faltar tudo, mas nunca o bacalhau”. Este cozinheiro também não tem dúvidas de que as pessoas preferem o bacalhau demolhado, em detrimento do congelado, porque a salga e a demolha “dão um sabor que faz toda a diferença”. Entre as especialidades deste restaurante que confeciona bacalhau proveniente da Islândia está o “bacalhau grelhado, de que quase toda a gente gosta”. E Carlos Santos admite que, “por ser mais grosso”, o bacalhau islandês “é ótimo para grelhar”.
Com efeito, o bacalhau de origem islandesa é um peixe com maior consistência e com um teor de gordura mais baixo em relação ao bacalhau da Noruega. Caracteriza-se pelas suas postas altas e lombos carnudos. Portugal importa, anualmente, cerca de sete mil toneladas deste peixe islandês, detendo a Grupeixe 40% de quota do mercado nacional, com cerca de três mil toneladas anuais importadas, até porque esta unidade nacional foi comprada, em 2019, pela VSV, que é uma das maiores empresas de pesca islandesas.
O concelho de Ílhavo, onde está inserida a Grupeixe, é o cluster da indústria de transformação de bacalhau em Portugal. Neste concelho, estão concentradas cerca de uma dezena das quinze indústrias do sector que existem no país. E isso é notório na pujante cidade portuária e industrial da Gafanha da Nazaré. É na Avenida dos Bacalhoeiros, junto à via de cintura portuária, que estão sedeadas muitas dessas empresas e é nessa via marginal que estão atracados alguns dos navios de pesca do bacalhau, bem como bacalhoeiros desativados e enferrujados, autênticas relíquias da tradição piscatória em alto mar. Além de centralidade de negócios, o bacalhau e as pescas transformaram o município de Ílhavo num chamariz turístico, de que o barco-museu Santo André (um antigo bacalhoeiro transformado em exposição permanente, que ilustra as artes do arrasto), atracado junto ao Jardim Oudinot, e o Museu Marítimo, no centro da cidade, são exemplos.
Ílhavo e os seus empresários são agentes da capacidade transformadora de criar valor acrescentado, de juntar pessoas à mesma mesa, de partilhar experiências e afetos e de contribuir para a identidade nacional. E se, como dizem, há 365 formas de confecionar o bacalhau, também há 365 dias por ano para descobrir este território e esta cultura piscatória tão rica e tão vasta.