Entrevistas

Vânia Sousa Lima: “A forma como o luto é vivido é influenciada por dimensões culturais”

Lidar com o luto é um processo complexo. Ainda mais complexo é quando, perante um acontecimento imprevisível, perdemos os nossos filhos de forma precoce. Como é que se ajuda alguém a passar por esta situação antinatural? A docente da Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Católica Portuguesa, Vânia Sousa Lima, explicou-nos como é que se gere este processo emocional que, por norma, é caótico.

Agência de Informação Norte – Como é que a Psicologia consegue ajudar alguém que perdeu um filho?
Vânia Sousa Lima
– Esta é uma experiência difícil para as famílias. Existem múltiplas formas de o suporte ser dado por um profissional de Psicologia e que terão de ser ajustadas às necessidades específicas de cada um. Isso vai dependetambém do contexto em que esta perda ocorreu.
Não é expectável que um pai perca um filho, naquela que é a sequência normativa da vida. Estamos perante um acontecimento com um potencial de dano muito grande – como o é qualquer perda –, a que acresce um caráter “antinatural”. Este será, talvez, o único elemento comum à experiência. Ou seja, um confronto com a perda e o luto é universal, mas a forma como se lida é absolutamente idiossincrática. A resposta por parte de um profissional de saúde mental tem que atender a estas especificidades.

Ninguém passa impune a uma experiência destas, não é?
Estamos a falar de um acontecimento que influi, de uma forma inequívoca, naquela que é a trajetória de desenvolvimento de uma pessoa. Deste ponto de vista, o sofrimento é inevitável. A variabilidade de respostas destes pais é enorme.
Em primeira instância, temos que validar este sofrimento, que é inequívoco. Depois, procurar aqueles que são os elementos que podem contribuir para uma reintegração da experiência e uma redefinição do próprio significado de si, como pai, como mãe e como pessoa, seja numa perspetiva individual, seja numa perspetiva relacional com o outro progenitor ou com a restante família,  particularmente outros filhos dos progenitores, que serão, em relação à pessoa que faleceu, irmãos, e que estarão também em sofrimento.

“A culpa é um sentimento típico nestas circunstâncias”

Nas famílias com quem falamos, foram as mães que falaram mais. Os pais foram mais reservados. Em todas elas, sentimos que existia um sentimento de culpa, do género: «Não lhe dei este beijo ou abraço». Acha que as mulheres se expressam mais do que os homens?
A forma como o luto é vivido é influenciada por dimensões culturais, seja naquela que é a expressão de emocionalidade, seja na sua verbalização. Do ponto de vista cultural, não é incomum estar mais presente nas mães. A culpa é um sentimento típico nestas circunstâncias, mas que não assenta em evidência; não existe uma razão objetiva para esta experiência de culpa. No entanto, é normal acontecer.
O papel do psicólogo procura fazer essa diferenciação. Se temos uma situação em que o filho falece antes do pai ou da mãe, por doença ou num acidente de viação – algo absolutamente inesperado –, a falta de controlo dos progenitores é maior.

Como é que se lida, no imediato, com tamanha dor?
Numa crise destas, o suporte nesta situação de emergência passa pela possibilidade destes pais poderem ventilar emocionalmente a experiência, em que a ajuda prestada por profissionais permitirá validar o sofrimento e ajudar a integrar esse acontecimento como uma realidade.

Segundo as famílias com quem falamos, alguns pais necessitaram de medicação no imediato, mas outros rejeitaram-na. No entanto, estes últimos afirmaram que mais tarde se arrependeram, porque teria feito sentido naquela altura. Qual é a melhor resposta ao choque inicial?
Estas respostas distintas estão relacionadas com as diferenças individuais na forma como se olha para a perda e para aquilo que é “suposto” ser experienciado. É claro que um acontecimento deste calibre gera uma elevada disrupção no imediato e que, desafortunadamente e não de uma forma incomum, se prolonga também no tempo.
Esta disrupção tem várias dimensões a nível físico, emocional, cognitivo e social. Cada uma destas dimensões interage entre si. A recusa da medicação também pode ser definida, muitas vezes, como uma forma de dizer «eu quero sentir este sofrimento». Do ponto de vista estratégico, é uma opção possível.
Agora, a grande questão que se coloca prende-se com aquela que é a intensidade do sofrimento, a duração do mesmo e o impacto que o mesmo tem no funcionamento da pessoa. Uma coisa é experienciar isto num período relativamente curto e, outra, não obstante, é que a perda e a dor associada à mesma se mantenha.
O papel da Psicologia é reconfigurar e reconstruir significados de si próprio e das relações. A verdade é que, se esta dor se prolongar e se tiver impacto no funcionamento da vida social, laboral ou familiar, aí entramos num imperativo de mudança de estratégia.

Na abordagem com estes pais, percebemos algo interessante. Ao fim de algum tempo, principalmente se os filhos faleceram há mais tempo, os progenitores arranjaram estratégias para não falarem do assunto com outras pessoas, dado que a tendência é perguntarem-lhes como estão. É uma defesa que criam?
De acordo com a minha experiência clínica, as pessoas vão desenvolvendo competências de seleção de interlocutores. Isto é, claramente, inteligente e desejável. Ou seja, «com quem é que eu falo sobre o quê», «em que circunstâncias» e «quem é que pode ser suporte». É uma questão de «ajuda versus quem é que não se constitui como ajuda».
Apesar de a interpelação das pessoas poder ser vista como uma expressão de cuidado e afeto, pode não ser percebido pelo próprio enlutado como sendo gerador de ganho. A capacidade de, na rede de suporte social – amigos, família alargada ou grupos de apoio –, selecionar as pessoas que são de maior ajuda parece-me ajustado.
Numa fase inicial, a relevância do acontecimento é de tal ordem que gera uma desorganização imensa em que a capacidade de fazer isto diminui. O que acontece, numa fase posterior, é um aumento da capacidade de recorrer a suporte social mais eficaz.

Foto: DR

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