Cultura
Noite do Circo: construir risadas e aplausos com ferramentas das obras
Música tocada com um serrote de madeira e uma colher de assentar cimento. E um corpo semi-despido como reflexo da metamorfose humana do mundo atual. Foram as performances de circo contemporâneo que marcaram o arranque da Noite do Circo, em Santa Maria da Feira. Este micro evento de artes performativas termina este sábado, com um espetáculo à tarde e dois à noite.
15 de novembro 2025
Como ferramentas e materiais usados na construção civil transformam um espetáculo de “circo lento” numa atuação cómica e divertida, de precisão física e performativa e de cumplicidade artística?! Jean-Paul Lefeuvre e Didier André, artistas franceses que se apresentam como Cie Atelier Lefeuvre & André, não precisaram mais do que uma marreta, um serrote de madeira, uma colher de assentar cimento, um balde metálico, bolas metálicas e traves de madeira para apresentar “Parblex”, ontem à noite, na “Noite do Circo” que começou no Museu de Lamas, em Santa Maria da Feira.
Neste espetáculo de circo de precisão, os dois artistas que trabalham juntos há vinte anos, converteram cada momento da sua performance de 45 minutos numa piada. As risadas do público ouviram-se, por exemplo, quando a dupla agarrou a marreta com uma cana de pesca que tinha um íman, quando aguentou o fio da cana de pesca a segurar a marreta enquanto um deles estava com a cabeça no chão e o corpo no ar, a rodopiar durante largos segundos, quando compuseram música com os utensílios das obras e quando o som da colher de assentar massa raspava no serrote de madeira recriando a sonoridade do tema principal da banda sonora do filme “The Godfather” (“O Padrinho”).
De uma simplicidade desconcertante, este duo francês primou pela cumplicidade, pela linguagem simultaneamente modesta e trabalhosa, pelo minimalismo que encheu o olhar e os sentidos e pela destreza meticulosa.
João Paulo Santos, Co-Diretor Artístico da Noite do Circo, sublinhou “as coisas aparentemente simples, mas muito complexas” trabalhadas para esta apresentação “sem grandes artifícios, mas cheia de essência e de grande exigência física”. Manifestou-se também muito satisfeito com a atuação desta dupla em Santa Maria da Feira.
Libertação e empoderamento
Libertar o corpo de uma espécie de colete de forças em forma de vestido, num contorcionismo dançado, num exercício de metamorfose humana, perante um mundo cheio de problemas, que vão desde a ecologia ao consumismo excessivo e ao capitalismo. Foi este o fio condutor de “Petralaions”, uma performance de contorção e manipulação de objetos apresentada pela espanhola Lucia Heege Torres. Nesta atuação, a artista propôs uma reorganização do corpo humano, parcialmente despido e pintado, perante essas problemáticas, numa reflexão sobre a sociedade atual, convidando o público a questionar-se sobre o seu próprio lugar dentro do organismo vivo que formamos. Telma Luís, da Direção Artística da Noite do Circo, acredita que esta forma de expressão artística “também é um exercício de empoderamento”.
Programação para hoje
Nesta terceira edição da Noite do Circo de Santa Maria da Feira, há outros espetáculos que merecem a atenção do público. Este sábado, às 16h00, o Museu de Lamas é palco de “Mellow Yellow”, uma performance do trio Collectif TBTF, que junta malabarismo, acrobacia e dança. Trata-se de um espetáculo imersivo, com o objetivo de encorajar o público a redescobrir a vida quotidiana da sua cidade e da sua região.
Às 21h30, a Cie Compagnie Jellyfish apresenta “Queen”, uma dança na corda bamba, de acrobacia e equilibrismo. Durante 30 minutos, a equilibrista procura a estabilidade do desequilíbrio.
Segue-se a estreia de “Isla of Flightless Birds”, uma atuação de 40 minutos, de mastro chinês, protagonizada pelo Duo Acaso (Tjasa Dobravec e Fernando Nogueira). O movimento e o risco de corpos que ganham identidade e vínculo, numa existência compartilhada, mostram que tanto fortalecem vínculos como antecipam a separação.
A Noite do Circo, em Santa Maria da Feira, assume o objetivo de valorizar o circo contemporâneo em Portugal. Integrado na rede internacional La Nuit du Cirque, o projeto junta parcerias nacionais e internacionais, com diferentes disciplinas artísticas, envolvendo a comunidade local e valorizando o património. O evento decorre no intimista e singular Museu de Lamas, que alberga um invulgar e admirável espólio de arte sacra dos séculos XIII a XX e de esculturas de cortiça, que pertenceram ao industrial da cortiça Henrique Amorim, o fundador deste espaço museológico.
Foto: DR



