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Aveiro: Turistas ajudam a manter vivas artes e espaços em extinção

O sal, em tempos designado o “ouro branco”, está a ser substituído pelo El Dorado do turismo. Se, por um lado, a região de Aveiro tem perdido marnotos, salinas, armazéns de sal, barcos moliceiros e barcos mercantel, ao longo das últimas décadas, também tem ganho em número de turistas à procura de experiências relacionadas, justamente, com o sal. De tal forma que o turismo tem ajudado à sobrevivência de artes e ofícios em vias de desaparecer.

Armando Reis mexe e remexe o sal, quebra-o e puxa-o com um rodo de madeira, num movimento suave e delicado, que agita a água parada dos compartimentos salínicos – os tanques de água – da Marinha da Noeirinha, em Aveiro. É um procedimento que este marnoto repete, diariamente, uma vez por dia, durante o Verão. Armando diz que são precisos “cerca de dois meses para produzir sal até recolhê-lo para consumo” e que “a extração do sal da salina ocorre entre julho e setembro”. Mas o trabalho dura o ano todo. “No inverno, fazemos a manutenção da salina e as limpezas. Entre março e abril, retiramos o moliço e preparamos tudo para a produção do sal”, acrescenta este funcionário daquela marinha privada.

“Marinha”, “marinha de sal” ou “salina” são designações que se referem à mesma coisa: as instalações a céu aberto, com condições especiais, onde se procede ao fabrico de sal artesanal, através do sistema de evaporação da água do mar. Esta atividade popular é considerada a mais antiga e a mais característica de Aveiro, sendo a extração de sal na região uma atividade milenar, havendo registos da sua prática datados de 959. Tal atividade é desenvolvida pelos marnotos, os homens responsáveis pela produção e extração do sal artesanal, pela utilização das alfaias de madeira destinadas a esse fim e por todas as tarefas a que a safra obriga.

Armando Reis é marnoto há 54 anos e, no dia a dia, tem a companhia de António Silva, um outro marnoto, com 30 anos de profissão. Ambos trabalham na Noeirinha que, por ano, produz cerca de cem toneladas de sal. A pele torrada pelo sol intenso, o trabalho mal remunerado, árduo e de grande exigência física, que inclui carregar as canastras carregadas de sal, não os demove. António reconhece que, se no passado, o que os incentivava e satisfazia era o ordenado, lembrando que “em 1990, ganhava-se cem contos limpos nesta arte e, hoje, pouco mais se ganha que o ordenado mínimo”, ainda há vantagens em ser marnoto: “é um trabalho ao ar livre, temos liberdade, não andam de chicote atrás de nós e sabemos o que temos de fazer”.

Mas os dois homens admitem que a profissão está a desaparecer. Armando diz que “há cerca de vinte anos que não entra ninguém novo para esta ocupação” e que, atualmente, “no distrito de Aveiro, só somos seis marnotos, só conhecemos seis pessoas a fazer isto”. António acrescenta que “ninguém quer aprender, porque não há incentivos, os ordenados são baixos, é um trabalho duro, tem de se trabalhar aos fins de semana e as pessoas só querem empregos de segunda a sexta”.

 Por ser uma profissão em vias de extinção, a que também não é alheia a expansão e a concorrência do sal industrializado, as salinas correm igualmente o risco de desaparecer. De tal forma que, se entre as décadas de 60 e 70, havia registos de cerca de 270 salinas ativas em Aveiro, em 1994, esse número caiu para 49 e, nos dias de hoje, “apenas sete salinas estão ativas”, no distrito, afirma Armando Reis, que vaticina: “quando não houver mais marnotos, isto acaba, as salinas morrem, porque a malta nova não vai pegar nisto”. A reboque dessa morte anunciada, também os barcos moliceiros (as típicas embarcações outrora usadas para a apanha e transporte de moliço e agora usadas para fins turísticos) podem ter os dias contados. Os dois marnotos dizem que, em todo o distrito de Aveiro, atualmente, só sabem da existência de “dois construtores de barcos moliceiros, em Pardilhó”.

O crescimento do turismo tem, no entanto, ajudado a preservar artes e ofícios na região, adiando a extinção dos marnotos e das salinas. As marinhas de sal ainda ativas em Aveiro “foram quase todas recuperadas por particulares”, nos últimos anos, e proporcionam várias experiências aos visitantes, contextualiza Elizabete Silva, funcionária da Marinha da Noeirinha. Nesta salina, com mais de duzentos anos de história, os turistas podem observar uma arte milenar, aceder às diferentes partes que compõem a marinha, visualizar as alfaias nela utilizadas, usufruir de um SPA salínico e de uma praia privativa.

O SPA salínico é um tanque de água e sal, com cerca de dezassete metros de comprimento por cinco de largura, com temperatura na ordem dos 25 graus e capacidade para um máximo de 30 pessoas. “Contém um elevado grau de salinidade, ideal para alergias e para a pele, já que o sal tem poderes cicatrizantes e antisséticos”, descreve Elizabete. “O sódio presente no sal elimina toxinas do organismo e ajuda a aliviar sintomas de artrite”, sendo, por isso, “uma exfoliação que faz bem às articulações e à pele, sobretudo, para quem tem problemas como acne e psoríase, favorecendo também a circulação sanguínea e a hidratação da pele”. Julia Poiss, Kirstin Kojlir e Julia Prajir, três austríacas, estudantes do Programa Erasmus, na Universidade de Aveiro há um ano, estão neste SPA salínico pela primeira vez e admitem estar a gostar da experiência. “É suave e sabe bem”, diz Julia Poiss. “É diferente e num sítio calmo”, elogia Kirstin. “Queremos cá voltar”, antecipa Julia Prajir.

Além do SPS salínico, a Noeirinha tem também ao dispor dos visitantes uma praia privativa, com capacidade máxima para duzentas pessoas, com água salgada e argila no fundo, onde se tem sempre pé, já que a altura da água oscila entre um metro e trinta e um metro e meio. Nesta praia, “a água e a argila permitem fazer máscaras corporais e faciais” e “o facto de as pessoas ficarem a boiar, não irem ao fundo e o facto de a água não ter ondulação, sendo por isso segura, é bom para as crianças”, explica Elizabete Silva. Além disso, a funcionária não tem dúvidas de que “muitas pessoas preferem estar nas salinas porque a água é mais quente e não há tanto vento como nas praias de mar” da região.

O areal em toda a volta da praia, com guarda-sóis feitos de madeira e colmo, com passadiços de madeira e uma ponte de madeira remetem o visitante para um pequeno paraíso em meio urbano. Aqui, é também possível arrendar uma das quatro casas-barco, que flutuam na água da praia. São de tipologia T2, têm capacidade para um máximo de cinco pessoas e fazem as delícias de quem procura paz. É o caso de “um casal inglês, que está aqui alojado há seis dias, passam aqui os dias todos e ainda não saíram da marinha, desde que chegaram”, adianta Sandrina Pinheiro, responsável pela manutenção. Do terraço destas casas-barco, avista-se uma paisagem verde, recortada pela água da ria de Aveiro, observa-se a biodiversidade de parte dos 55 mil hectares de área que a ria ocupa, sobressaem colónias de flamingos brancos e flamingos cor de rosa e desfruta-se de um pôr do sol num ambiente calmo e relaxante.

Atraídos cada vez mais por espaços-experiência como este, os turistas que procuram a região de Aveiro ajudam, não apenas, a manter vivas as salinas, mas também a tradição das embarcações típicas da zona. Os barcos moliceiros que, noutros tempos, eram usados para a apanha de moliço e de algas, e os barcos mercantel, que eram utilizados para o transporte de mercadorias, sobretudo, de sal para os armazéns, são hoje a imagem de marca da cidade, conhecida como a Veneza portuguesa, por transportarem turistas em passeios pelos quatro canais navegáveis dos seis que existem em Aveiro. E, se como sublinha Francisco Ferreira, o mestre do moliceiro “Valente”, “hoje, não há no canal de São Roque, em Aveiro, nenhum armazém de sal, para onde os barcos possam transportar o sal, porque o último armazém fechou no fim do ano”, quando “no passado chegou a haver 72 armazéns de sal”, em contrapartida, tem aumentado o número de empresas de passeios turísticos com barcos moliceiro e mercantel.

Sílvia Monteiro, funcionária da “Espaço Experiências”, uma dessas empresas que tem sete barcos a navegar nos canais da ria de Aveiro, diz que são “dez as empresas que operam estes barcos tradicionais na vertente lúdica e turística”. “Diariamente, circulam pelos canais da ria entre 20 e 25 destas embarcações turísticas”, embora a afluência dependa das épocas do ano. A empresa “Espaço Experiências”, por exemplo, opera “todos os dias do ano, exceto no dia de Natal”, sendo o “Ano Novo um dia de muita procura para este tipo de passeios”. Sílvia estima que “este verão, por dia, cerca de mil pessoas fizeram estes passeios de barco”. Ainda assim, o número é inferior à média diária de outros anos, “por causa das obras que estão a decorrer no centro da cidade, para construir um parque de estacionamento subterrâneo e uma rua pedonal”.

Aveiro tem, assim, mostrado que a revitalização dos espaços e das memórias ligadas à indústria do sal é, cada vez mais, uma tarefa que assiste ao poder local, a empresários e aos turistas. O “ouro branco”, como em tempos foi designado o sal, parece estar a ser substituído pelo El Dorado de quem vem e de quem vai e dos que contribuem para a preservação do “palácio do céu”, como outrora Almada Negreiros designou as salinas.

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