Sociedade

O distanciamento da morte no frio do último adeus

Artur Palma fez na noite de sexta-feira, dia 29, uma chamada de vídeo para a mulher de uma vítima de covid-19, mostrou-lhe o caixão à porta do cemitério e consumou assim mais um funeral.
São 21:30 quando o dono da agência funerária chega com o corpo de um homem de 81 anos que morreu no domingo passado, dia 24, ao parque de estacionamento em frente do Crematório de Rio de Mouro.
Há quatro familiares do homem, à espera, um deles abre um chapéu porque está nevoeiro e cai uma chuva miudinha. Choram-se as últimas lágrimas, toca-se o caixão ainda dentro do carro no parque de estacionamento, sente-se a revolta por a vítima ter apanhado a doença no hospital, por as pessoas continuarem na rua como se aquilo não estivesse a acontecer todos os dias.
Artur Palma faz uma chamada por whatsapp para a viúva, 69 anos, em casa, porque também está infetada, mostra-lhe o caixão, deixa-a despedir-se, e o carro passa o portão que dá acesso ao crematório. Acabou ali o funeral. A família há de receber por estes dias um pote com as cinzas, que vai guardar num gavetão do cemitério, que já tem reservado.
É normal um funeral assim numa sexta-feira às 10:00 da noite? Não é normal, mas agora acontece, aos fins de semana, a todas as horas, diz Artur Palma. “Este ainda teve aqui quatro pessoas, muitos não têm ninguém, nós somos a família, porque a família está infetada e confinada em casa”.
É por isso que faz funerais com missa à porta dos cemitérios, é por isso que já fez mais de uma dezena “sem ninguém”, com ele e outro funcionário da agência e um padre, tudo filmado pelo telemóvel. “É o único meio que as pessoas têm de ver. Fazemos funerais por internet, digamos assim”.
São desta forma os “dias desgastantes” da funerária, com os meses de dezembro e especialmente janeiro a serem “uma coisa do outro mundo”. Só em janeiro, diz Artur Palma, fizeram 41 funerais, 35 deles de vítimas de covid-19. Num mês qualquer antes da pandemia a média rondava os 15, um a cada dois dias, agora são três por dia, e tem de recusar funerais.
Há um ano, na primeira vaga da pandemia andou-se a “brincar à covid” porque ninguém pensava que fosse verdade, no verão tudo voltou ao normal e no outono, com a segunda vaga, ainda estava “tudo bem”, porque só as pessoas idosas é que morriam. E agora? “Só agora é que as pessoas se dão conta da dimensão do que isto é, mas ainda não têm a noção do que é a covid-19 porque se tivessem não saíam de casa”.
Artur Palma, 46 anos, é um homem cansado. Já nem se lembra quando teve um fim de semana livre, nunca sabe quando pode dormir descansado, quando lhe toca o telefone a meio da noite para ir buscar um corpo a uma residência, a um lar. Estão a morrer muitas pessoas em casa, avisa, afiançando que “a meio da noite ligam para ir buscar corpos”.
São cerca das 21:00 de sexta feira quando o diz. Não sabia ainda que às 05:00 de hoje lhe iriam telefonar para ir buscar um corpo de um homem de 91 anos na Amadora. Não sabe se morreu de covid-19, mas vai com José Santos, que com ele trabalha, vestido com todos os equipamentos de proteção. “Entramos no prédio e as pessoas ficam a olhar, parecemos astronautas”.
“Estão a morrer muitas pessoas em casa, as pessoas têm medo de ir aos hospitais, preferem ficar em casa, vão ficando por ali e vão morrendo. Não é covid-19 porque não há testes”, assegura.
Artur Palma trabalhou na casa mortuária da Maternidade Alfredo da Costa e há 23 anos abriu a Agência Funerária Velhinho, na Amadora. José Santos trabalha com ele há dois, há mais três funcionários e há dois carros funerários e uma câmara frigorifica, instalada num armazém.
É lá que estão duas dezenas de caixões novos, é lá que estão os corpos, que vão saindo à medida que é possível. Mas a agência funerária não estava preparada para nada assim. Com o rodopio de mortes, em hospitais, em lares, nas casas, com uma capacidade da arca para cinco corpos, não chegava nem que fossem mais três câmaras. “Não tenho onde colocar mais corpos, meto os corpos onde?”
Neste “teatro de guerra” faz-se como se pode fazer, identifica-se o corpo, manda-se fotografia à família, elimina-se o ritual do funeral, o velório, o acompanhar do corpo ao cemitério ou ao crematório, a missa, o fechar da urna.
Artur Palma diz que se o corpo for sepultado o funeral é relativamente rápido e que o que demora é a cremação, às vezes mais de uma semana, que é de longe o que os familiares mais preferem. E fala de outro problema: com o desemprego causado pela pandemia as pessoas não têm dinheiro para pagar os funerais. “Há pessoas que vêm ter comigo e não têm um cêntimo para dar. Adiantamos tudo. E quando recebem o dinheiro da Segurança Social também não pagam porque não podem. É isto que estamos a passar”.
E como se gere emocionalmente esta espiral de mortes? Artur Palma já teve de enterrar também, desde que a pandemia começou, uma tia, um primo, o avô e o pai. Fica uns segundos a pensar e responde assim: “Nós estamos um bocadinho… não é adormecidos… estamos meios dormentes… estou a pagar um preço muito caro, mesmo muito caro… nunca imaginei passar por uma coisa destas…”
Nem José Santos, que não se lembra de quando teve um fim de semana para ele e para a família, que janeiro foi um mês desgastante e que é massacrante o frenesim dos dias que vivem.
“Não vejo a minha mãe, não vejo as minhas filhas, os nossos acabam por morrer de solidão, é muito triste”, acrescenta o dono da agência funerária. “Em dezembro caiu-nos o mundo em cima e o janeiro então foi uma coisa terrível”.
E fevereiro? Artur Palma não vê nenhuma luz “ao fundo do túnel”. Era preciso fechar tudo, “tudo fechado mesmo, de uma maneira que houvesse pouca gente na rua, estar assim um mês e meio, dois meses, para pôr fim a isto, se não, não vamos conseguir dar a volta”.
Com os atuais números oficiais da pandemia de covid-19 estão a morrer em Portugal uma média de três pessoas a cada 15 minutos, 12 pessoas a cada hora. Só os confirmadamente por covid-19.
Artur Palma não o diz. Mas dizem o desalento das suas palavras, o cansaço de quem está há muito tempo “meio dormente”, que fevereiro pode bem ser passado com José Santos, a fazer funerais por whatsapp em parques de estacionamento.

FP/MC // VC

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