Entrevistas

Duarte Baião: “propus-me a escrever com qualidade, deixando em segundo plano a quantidade”

Neste que é o seu primeiro livro, Duarte Baião revela de forma plena o traço distintivo da sua escrita: a capacidade de, através da descrição de detalhes que escapariam a outros, simbolizar de forma cativante para o leitor o essencial das histórias que tem para contar. Conheça nesta entrevista as “Crónicas do Desassossego”.

Foi Alice Vieira, a grande escritora portuguesa, que na semana passada fez o favor de alertar os seus seguidores de que havia um livro que lhe tinha despertado interesse, com o Título “Crónicas do Desassossego”. Depois de mergulhar nestas “Histórias de um amor que já todos sentimos. Histórias de uma cidade em que já todos vivemos. Histórias de um olhar profundo e inquieto, que é de todos aqueles que se recusam a apenas… ver”, a Agência de Informação Norte falou com o autor, Duarte Baião.

Por: Andreia Carneiro

Agência de Informação Norte – Duas décadas de jornalismo sentem-se em cada crónica deste livro. O amor pela escrita nasce desta profissão, tão intensa e cheia de histórias para contar?
Duarte Baião
– Sim, indiscutivelmente… O jornalismo que fiz durante 20 anos é indissociável do gosto que tenho pela escrita. Foi muito tempo a trabalhar em jornais diários, com um ritmo que impunha sobretudo quantidade, e que nem sempre permitia aliar-lhe a desejada qualidade – ainda assim essa estava lá, penso, mas como segunda prioridade. O jornalismo escrito, sustentado em órgãos de informação diários, implica um nível de produtividade que raramente se encaixa na legítima ambição de fazer depressa e bem. É preciso informar com rigor, com objetividade, e a criatividade acaba naturalmente por ir escasseando com o passar do tempo. É como cozinhar todos os dias: a dado ponto, por muito grande que seja a perícia do cozinheiro, é quase inevitável repetir pratos, seja por limitação de tempo, seja por cansaço. Porém, e como é lógico, esse tempo, essa experiência, esse ritmo, permitiu-me obter uma bagagem e um nível de treino no exercício da escrita que facilitou no momento de executar as crónicas que resultaram neste livro. Por imperativos pessoais tive de, sensivelmente aos 40 anos de idade, abandonar o jornalismo, mas o bichinho da escrita ficou e eu fiz questão de o ir alimentando, não apenas para não o deixar morrer mas também por uma clara necessidade emocional. Escrever faz parte das minhas funções vitais, se quiser. Mas desta vez, e com as “Crónicas do Desassossego”, tive a oportunidade de inverter as prioridades de que falei: propus-me a escrever com qualidade, deixando em segundo plano a quantidade. O livro foi ganhando forma devagarinho, sem imposições, sem um tempo definido, e quando o considerei suficientemente maduro decidi publicar.

“Não sei se sabes ao que me sabes” é a primeira viagem que este livro nos permite, por estas “Crónicas do Desassossego”. O amor é fogo que arde sem se ver e ajuda a escrever em horas sombrias?
O amor, seja na sua abundância, seja na sua carência, será possivelmente o tema mais transversal e aquele que mais facilmente permite uma identificação do leitor com aqueles que são os pensamentos do autor. Do mais louvável e adorável ser humano ao mais visceral assassino, não há pessoa que não tenha experimentado um qualquer grau de amor, em algum dos seus matizes. Escrever sobre amor é por isso um terreno fértil, e pode ser tão prazeroso como doloroso. Obviamente não fiz questão de transformar o meu livro numa espécie de ode ao amor, mas aconteceu casualmente falar de amor em diversas das crónicas. O amor é, obviamente, fonte de inspiração de incontáveis poetas e romancistas, mas estou em crer que o desamor ainda o é mais. Diria que a melancolia é mesmo a tinta da caneta. O elemento da dor pode ser extremamente inspirador e catártico. Na verdade, é a doença e a cura. Por isso, por tocar nos dois polos, se torna tão difícil escrevê-lo e descrevê-lo.

Misérias e grandezas do ser humano estão espalhadas nestas páginas. As pessoas do nosso Mundo estão com extrema miopia para o que realmente são as questões desta vida?
Tenho por hábito não julgar. Será defeito de profissão, possivelmente, mas tanto na esfera pública como na privada tento manter um distanciamento que me possibilite uma análise objetiva, factual e sem julgamentos primários. Isto para dizer que, e usando a sua expressão, não considero que haja uma miopia para o que realmente são as questões da vida, mas antes uma tendência acentuada para estarmos cada vez mais centrados nos nossos umbigos, e não termos tempo para olhar para quem está fisicamente ao nosso lado, para partilhar um bom dia, um olá, um dedo de conversa, uma troca de opiniões. E isso vê-se nas mais variadas situações e contextos, talvez de forma mais vincada nos ambientes urbanos. Sem querer diabolizar as redes sociais, que são tão incontornáveis quanto necessárias, elas na verdade aproximaram quem está longe e afastaram quem está perto. Quantas vezes já viu um casal à mesa em que cada um está com os olhos no telemóvel, nas mensagens, na busca de conteúdos? Quantas vezes serviram as redes sociais, a mim, a si, a todos, para uma instantânea massagem ao ego, para um like, para ser de forma consciente ou inconsciente o objeto da atenção? Tenho telhados de vidro, todos temos, mas faço um esforço para continuar a olhar à minha volta, e este livro é um pouco o reflexo disso.

Senti ao ler o livro que há “cheiros e sabores” por todo o lado! Uma forma de escrita lúcida que nos desperta os sentidos. Ter visto o seu livro já passear pelas mãos de pessoas como Alice Vieira ou a “competir” ao lado do José Eduardo Agualusa parece ficção? Sabe a quê?
Sim, muitas vezes é difícil de acreditar. No espaço de um ano, nem isso, tive o privilégio de receber o Prémio de Não Ficção 2021, da parte da minha editora, a Cordel D’Prata; tive o gosto de ver o meu livro divulgado na RTP, no programa “As Horas Extraordinárias”; tive a honra de ver o meu trabalho na Feira do Livro de Lisboa e de ser convidado para palestras em escolas… Tem sido um turbilhão de emoções que não contava e que resulta de um sem número de pessoas que estiveram sempre presentes para apoiar e divulgar, especialmente os meus leitores. Concorri ao Grande Prémio de Crónica e Dispersos Literários, da Associação Portuguesa de Escritores, que foi atribuído ao consagradíssimo José Eduardo Agualusa, e foi uma enorme aprendizagem e vitória pessoal ter sido aceite a concurso. E ao cabo de tudo isto ver a inigualável Alice Vieira, um dos nomes maiores da nossa Cultura, publicar em vídeo uma crítica extremamente positiva ao meu livro, é algo de absolutamente transcendental. Não consigo encontrar paralelo que faça inteira justiça, mas, narcisismos à parte, é quase tão arrebatador quanto aqueles momentos em que recebemos elogios por algo que um filho tenha feito.

Há nesta obra uma homenagem às mulheres da sua vida. Sem querer entrar, na vida pessoal, do autor, o que é que recebeu delas, que até hoje lhe corre no sangue?
Educado quase em exclusividade pela minha mãe e pelas minhas quatro irmãs, e sendo pai de duas meninas absolutamente extraordinárias, por quem tenho um amor e orgulho supremos, é-me impossível pensar na pessoa que sou sem uma influência marcadamente feminina, orgulhosamente feminina, diria. Não vejo que a espécie humana seja necessariamente feita de rosa e de azul, não considero que haja uma distinção tão vincada entre aquelas que são as características essenciais da mulher e do homem – apesar de continuarem a existir enormes preconceitos e discriminações sem sentido –, mas se me é pedido para isolar uma característica socialmente associada ao género feminino e que me tenha de alguma forma moldado, diria que é a capacidade para sentir e exprimir as emoções na sua plenitude.

 

Qual é a visão que tem:

De Portugal?
Um país que, apesar das suas incontáveis grandezas e endémicas misérias, tem sabido projetar-se para um futuro que pode ser bonito.

Do jornalismo?
Um pilar da Democracia que, infelizmente, atravessa uma crise de contornos muito difíceis no nosso país.

Da arte?
A arte, nas suas mais diversas formas, é o espelho da alma. O mundo precisa de gente com alma, precisa de Cultura, e Portugal tem o dever de fazer mais e melhor no apoio aos seus artistas.

Da política?
Proudhon disse que a política é «a ciência da liberdade». Eu diria que à política escasseiam bons cientistas um pouco por todo o mundo. Mas ainda os há.

Da vida?
Um milagre que, acredito, não é exclusivo deste nosso mundo.

Conte-nos um episódio que viveu no jornalismo que merecia ser contado em livro?
O curto espaço de tempo que mediou entre Lance Armstrong me chamar de «cão» e me oferecer uma entrevista exclusiva. Se contar mais que isto, já não posso colocar em livro…

E, já, agora, tal como a escritora Alice Vieira, disse, Duarte um não chega! O que lhe apetece escrever a seguir?
Um bom romance. Mas não quero deixar que o processo criativo seja corrompido pela pressa. O momento chegará.

Assim, se apresenta o livro…

«Crónicas do Desassossego» é um exercício apaixonado e apaixonante sobre as grandezas e misérias da sociedade e do ser humano, um olhar atento, inquieto e acutilante, mas também com apurado sentido de humor. Não há qualquer desejo de sofisticação ou falsa demonstração de intelectualidade no que aqui se escreve – passear pela prosa de Duarte Baião é uma delícia de simplicidade e lucidez, de cheiros e sabores, uma experiência com os cinco sentidos bem despertos em que o leitor caminha guiado pela imaginação do autor, desaguando em finais nem sempre felizes. Porque a vida não se faz apenas de felicidade, aqui estão também angústias e desilusões várias, amores e desamores. E, acima de tudo, textos em que, na voz de um adulto, com a maturidade bem assente, parece que voltamos a ouvir o poema de Alexandre O’Neill e, «como um adolescente», alguém «tropeça de ternura». Uma obra trazida à estampa pela editora Cordel d´Prata editora.

Quem é Duarte Baião…

Nasceu em Moçambique a 8 de maio de 1974, mas vive em Lisboa desde os dois meses de idade. Licenciado em Ciências da Comunicação, dedicou 20 anos ao jornalismo, tendo trabalhado nos jornais A Bola, 24Horas e Diário de Notícias, e atingido o estatuto de Grande Repórter.

Fotos: DR

 

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