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Sexualidade na deficiência: “Somos pessoas, temos desejos e direito ao sexo”
São portadores de deficiência. Sentem desejos, excitam-se, sonham, amam, são felizes, fazem amor mas lamentam que a sexualidade na deficiência ainda seja um assunto tabu pouco aceite pela sociedade e pelas próprias famílias que os tentam proteger. É uma situação que a Cerci de S. João da Madeira tenta acompanhar de forma “natural”, uma vez que todos os dias existem paixões na instituição.
António Gomes Costa
DR
“Até podemos ser deficientes, mas somos pessoas, temos desejos e direito ao sexo”, diz convicto Luís (nome fictício) que tem como companhia diária uma cadeira de rodas. Tudo mudou na vida deste homem, agora com 40 anos, depois de lhe ter sido diagnosticado uma encelomielite aguda disseminada, doença causada por um vírus atingindo a medula espinal. “Existe muito estereótipo que somos deficientes, inúteis” e que não “servimos para nada nem para (f…), desabafa. Luís é casado e pai de dois filhos e assume que “tenho uma vida normal dentro das minhas possibilidades” e que “devo ser mais feliz sexualmente do que muitas pessoas ditas normais”. É sua opinião que falar de “sexo na deficiência é um assunto tabu imposto pela sociedade que, a todo o custo, não nos querem reconhecer a sexualidade e o direito em sermos felizes na cama ou na cadeira de rodas”.
Maria (nome fictício) nasceu com paralisia cerebral há 36 anos. Descobri a sexualidade muito tarde, porque via em mim um corpo mal definido, nada atractivo e ninguém me falava de sexo”. Tudo mudou quando encontrou um “amigo especial” também ele com limitações físicas. “Comecei a aceitar o meu corpo, hoje sei o que é amar, ser desejada, fazer amor e excito-me porque estou viva!”. Uma das grandes lutas que travou foi aceitar e não valorizar os comentários da sociedade. “As pessoas olhavam para mim com pena e esquecem-se que nós somos úteis e que, ao longo dos anos, temos dado provas de que somos bons” e o exemplo são os prémios conquistados nos Jogos Paralímpicos. “Já era tempo de olharem para nós como somos, deixando para trás a imagem de incapacitados e de assexuado”, remata.
Ana Garrett, doutorada em Psicologia Clínica, que integra o grupo de investigadores do Centro de Investigação e Intervenção Social (CIS-IUL) do ISCTE, e actua na área de Psicologia Clínica e de Reabilitação e Investigação. Na sua opinião, a pessoa com deficiência não deverá ser entendida como “assexuada, de modo a questionarmos a importância da esfera sexual na sua vida”. A plenitude e a amplitude de se ser passa pela “premissa de que todos e todas temos os mesmos desejos, anseios, necessidades, fantasias, sonhos, construções e planos face ao amor e ao amar”, explica a psicóloga.
Quanto ao assunto “tabu na deficiência”, diz que prefere chamar-lhe desconhecimento. “Existe uma lacuna avassaladora na preparação académica/técnica de profissionais relativamente à sexualidade humana na sua generalidade”. A par dessa lacuna, a temática da deficiência pouco ou nada é “abordada academicamente. Agora, juntamos estas duas áreas e percebemos de imediato que nada é convenientemente explorado, com rigor e seriedade”, assegura.
Mudar mentalidades…
Ana Garrett, que investiga e acompanha há vários anos estes casos, defende campanhas de sensibilização junto de instituições que lidam diariamente com portadores de deficiência, uma vez que permite mudar mentalidades, alertando, chamando atenção, permitindo também apoiar profissionais e as famílias para que, “paralelamente, a pessoa com deficiência veja um dos seus direitos mais básicos ser compreendido e atendido”.
Para esta especialista é necessário ter a noção de que a pessoa com deficiência, qualquer que seja a sua incapacidade, “pode sentir de forma semelhante a qualquer outra. Biológica e quimicamente, a matriz pode não se alterar (na maior parte de vezes, não se altera). Agora juntemos isso à eventual dificuldade na auto-crítica, ou na incompreensão, face ao aceitável socialmente, à incompreensão das regras, a um mundo diferente. Pode ser o caos. O caos interno…”, assegura.
Questionada da forma como a pessoa com deficiência se manifesta perante a sexualidade, explica que não existem padrões. “Pode depender (e muito) do estímulo ao redor. Pode ser através da masturbação, que não deve ser reprimida nem condenada, mas sim explicada e adequada ao momento e lugar”. É ainda sua opinião que pode, inclusive, haver “agressividade sem foco de carácter sexual explícito, justamente devido ao caos interno. Além disso, também podem ocorrer sentimentos de amor passional, fantasias e “castelos na areia”, que, não raras ocasiões, resultam em sofrimento e dano, cabendo aos cuidadores, “dotados de conhecimentos, orientar e apoiar”.
Por seu turno, Abílio Manuel Cunha, presidente da Associação de Paralisia Cerebral do Porto, garantiu à nossa reportagem, que”não existe nenhum estudo que evidencie que nós não podemos ter uma vida sexual normal, mesmo nos casos mais graves” Uma das grandes dificuldades para determinados “mitos” começa logo em casa. “As famílias, por norma, desde idade muito precoce têm um atendimento de “super protecção dos seus filhos e nunca imaginam que algum dia vão ter actividade sexual”, existindo ainda, para isso, um longo caminho para trabalhar, junto de “psicólogos, instituições e famílias”, anuncia.
“Todos os dias temos paixõezinhas na CERCI”
Sandra Oliveira, psicóloga clínica na CERCI de S. João da Madeira, diz que na instituição todos os casos são diferentes e que ali os “impulsos sexuais” são acompanhados de forma natural e em sintonia com as famílias. Lamenta, por sua vez, que, em Portugal, a “sexualidade na deficiência” seja vista ainda “como um pecado e nem sempre entendida”. Na CERCI as perguntas dos utentes são muitas e as respostas acontecem com muita tranquilidade: “Querem saber o que é a sexualidade, o que é estar excitado, se é normal o coração bater mais rápido, se a masturbação é pecado, falam do preservativo, contraceptivos, têm dúvidas relativamente ao nascimento dos bebés e como se fazem” (…).
A forma natural como a instituição lida com o tema poderá ser um dos segredos para a resposta a determinadas situações que vão surgindo no dia-a-dia. E, quem diz que estas pessoas não sabem amar, está redondamente enganado. “Todos os dias temos paixõezinhas na CERCI. Umas mais físicas, outras de mais de idealização, algumas mais ingénuas, existe também quem fale em casamento, namorar” e outras de um sentimento muito “forte”, enfatiza, Sandra.
O certo é que o tema acarreta ainda muitos mitos e crenças. Mariana Amorim também psicóloga da instituição, e responsável pelo acompanhamento de um grupo de utentes, que todas as semanas se reúne para abordar o tema da sexualidade, assume que um dos grandes desafios da instituição é trabalhar com os utentes a distinção entre o “público e o privado”. Tudo isto para que possam entender que, apesar do “corpo ser meu, são coisas íntimas, ninguém os vai punir, é algo pessoal”, mas sempre com a certeza que “existem locais apropriados e certos para isso” mas, não na CERCI”.
Ambas as psicólogas garantem que ainda existe um grande caminho para percorrer e para trabalhar neste assunto, uma vez que ainda há preconceitos para desmistificar o assunto, mas, “aos poucos, vamos conseguindo, uma vez que na CERCI verificamos que existe uma normalidade sobre o assunto, entendendo que ter desejo não é errado e saber onde podem ter determinados comportamentos respeitando-se a si e o outro”, rematam.
Nos enquanto deficientes, para alem das nossas limitacoes fisicas, somos tantas vezes discriminados pela sociedade de diversas formas, uma delas e a nivel da sexualidade, pois infelizmente a sociedade ainda tem muitos tabus sobre a sexualidade na deficiencia