Opinião

Não é só uma questão das Urgências

Segundo dados da Ordem dos Médicos, em 2018 existiam mais de 2000 médicos especialistas em pediatria inscritos na Ordem, mas o Balanço Social do Ministério da Saúde (também referente a 2018) revela existirem apenas 1099 especialistas em pediatria médica no SNS.
A pediatria foi, aliás, uma das especialidades médicas com mais volume de horas suplementares durante o ano de 2018 – quase 400.000 – e onde se gastou quase 3 milhões de euros a contratualizar mais de 80.000 horas de trabalho a prestadores de serviço externos.
São sintomas da falta de profissionais para dar resposta às necessidades do SNS e à procura dos utentes.
Enquanto isso, 20% dos recém-especialistas em pediatria formados no SNS não quiseram ficar a trabalhar nesse mesmo SNS. Outros, que já lá trabalharam estão a sair, situação que agravou, por exemplo, a situação no Garcia de Orta.
O que está a acontecer hoje nas urgências pediátricas no hospital de Almada não é nada que já não se tivesse visto acontecer nas urgências de obstetrícia e ginecologia da região de Lisboa. Se bem se lembram, a falta de profissionais (em especial, obstetras e anestesistas) levou a que se considerasse o encerramento rotativo das urgências da Maternidade Alfredo da Costa e dos hospitais de Santa Maria, São Francisco Xavier e Fernando da Fonseca.
Também neste caso os números são expressivos: existem cerca de 1400 especialistas em obstetrícia em Portugal, mas apenas 850 trabalham no SNS.
Se o SNS conseguisse fixar e captar mais médicos especialistas, muitos problemas estariam resolvidos. A questão é: porque não consegue fazer isso?
Porque em muitos casos o trabalho no SNS deixou de ser atrativo. A gestão empresarial e os mantras do new public management deram cabo das carreiras, o recurso cada vez mais frequente a prestadores de serviços e profissionais que não estão a tempo inteiro no serviço destruíram a equipa, o volume de trabalho e a condição em que o mesmo é feito esgota os trabalhadores.
O SNS não pode ser feito de tapa-buracos, não pode ser o da gestão dos serviços mínimos ou, na pior das hipóteses, o da gestão dos encerramentos que se fazem – ora neste hospital, ora naquele – por falta de recursos. O SNS tem de ser o da formação inigualável, o do crescimento técnico, científico e humano; tem de ser o que dá espaço para a investigação, o que incorpora a tecnologia mais avançada, o que potencia o desenvolvimento dos métodos e das técnicas. Tem de ser o que fixa pessoas que querem trabalhar no SNS porque sabem que ali está a melhor tecnologia, estão as melhores técnicas, estão os melhores profissionais.
Não admira que na década de 60 alguns médicos tenham estruturado um sistema de saúde público e integrado a partir das carreiras profissionais. Porque sabiam que sem condições para os profissionais exercerem a sua profissão não poderia haver bons cuidados de saúde à população.
É por aí o caminho: carreiras dignas que estimulem a dedicação plena e promovam a exclusividade através de incentivos profissionais; criação de equipas e não de contratações avulsas; incorporação de tecnologia e espaço para a investigação e descoberta. Estes são passos fundamentais para fixar os médicos que se formaram no SNS, para captar outros que se afastaram e para resolver a falta de profissionais. A alternativa é má demais para ser sequer considerada: é a da concentração de serviços face a míngua de recursos e a da externalização cada vez maior de serviços externos e tarefeiros.
A Nova Lei de Bases da Saúde que o Bloco de Esquerda impulsionou na anterior legislatura criou caminho. Agora é preciso concretizá-lo: planos plurianuais de investimento, carreiras profissionais, orçamentos em função das necessidades do SNS, promoção da dedicação plena, um novo estatuto do SNS que acabe de vez com a promiscuidade que consome e exaure os recursos públicos… São alguns dos passos que é preciso dar agora.
O Bloco, tal como fez na Lei de Bases, será o impulsionador de todas estas alterações, estou certo.

Moisés Ferreira-Deputado do BE

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