Opinião

Os Ovnis de Espinho – uma oferta cultural com sabor a privilégio

Espinho é uma cidade pequena, mas tem uma sorte tremenda. A sorte de termos cá dois Ovnis extraordinários e mesmo a jeito, para quem os quiser desfrutar.

Quando falo em ovnis, escrevo-o no sentido da enorme improbabilidade que é, numa terra tão pequenina, e de província, usufruirmos o privilégio de termos dois serviços culturais de qualidade excepcional e programação irrepreensível, capazes de rivalizar com alguns dos maiores.
Primeiro que tudo: o Auditório de Espinho – Academia.
Há dias, numa Casa da Música completamente à pinha para ver o gigante Tim Bernardes, tentávamos adivinhar quantos Auditórios de Espinho caberiam na sala Suggia. Cinco? Seis? Isto porque, em 2018, apenas um quinto (ou um sexto, ou menos?) daquelas pessoas tiveram o privilégio de ver o músico brasileiro estrear-se em palcos portugueses, incluindo a Norte – e foi justamente o Auditório de Espinho que o acolheu, num serão ultra intimista que nos embalou a todos como um sonho. Um concerto feito só de voz, piano e guitarra, numa sala com uma acústica tão depurada, cristalina e perfeita que me esmaga de cada vez que lá regresso. Porque quem sabe, sabe; e aqui sabe-se. Fazem-se as coisas bem feitas. Quando sentimos a vibração de uma viola baixo a ressoar limpidamente em nós-inteiros, está tudo dito.
E é mesmo um privilégio. Discreta e exemplarmente, a sala espinhense tem sabido atrair para cá, muito antes de todo o hype, alguns daqueles nomes que, inevitavelmente, irão ser grandes. Os que, daí a nada, estarão a encher Coliseus e CdMs.
Vi por lá – a uns cómodos cinco minutos de casa – alguns grandes concertos desta vida. O Tim. O Devendra em dupla com o fantástico Andy Cabic (vocalista dos Vetiver e favorito pessoal). O Kevin Morby. O furacão Kelly Finnigan, numa noite epifânica, de êxtase absoluto, que há-de ficar gravada na minha memória durante anos (e que aconteceu dias antes de o mundo se fechar em pandemia; foi por pouco que aquela noite épica não nos fugiu). Tão bom que foi cada um deles, entre tantas outras bandas e músicos e espetáculos que passaram por esta cidade de nome impronunciável (Ésse-piniô, dizem eles todos) e que, entre si, têm em comum uma coisa certa: o facto de serem valores seguros e garantirem que saímos de lá, daquela sala elegante e aconchegada, com o coração sempre cheio.
É claro que este extraordinário fenómeno tem um nome, e ele não faz questão de que o diga, mas digo-o na mesma, porque merece: o programador André Gomes. É ele o mago que, de alguma forma, consegue sempre puxar para cá tudo o que importa cá trazer. É ele que tem olho e ouvido para descobrir primeiro aquilo que todos vão querer aplaudir algum tempo depois. Já são anos disto, de paixão melómana imaculável ao serviço do Auditório de Espinho, sem jamais dar passos em falso ou defraudar-nos com as suas escolhas. Isto não é para todos; é mérito inteiro dele.
Na semana passada, numa noite qualquer, lembrei-me de picar umas faixas da banda que ele ia trazer cá neste último sábado, os ADHD, quarteto de islandeses coolíssimos que tocam uma receita fatal de jazz com laivos de rock, uma coisa inteiramente instrumental e viciante. Eu não os conhecia, mas gostei logo daquilo ao fim de 10 segundos de audição. Portanto, comprei bilhetes e fui. E foi incrível.
Pela primeira vez desde que me lembro, não encontrei a sala do Auditório esgotada, mas estava impecavelmente composta para ver e ouvir uma banda que não é óbvia, nem acessível a todos os ouvidos, mas que ofereceu um som refinado, distinto, a espaços brutal, muito a gosto de quem lá esteve. E não é sempre assim, neste porto seguro que é o Auditório? Encontrei por lá a minha amiga Mónica, que veio do Porto para os ver. Há uns anos, ia eu ao Porto e cruzávamo-nos em concertos refundidos em salas pequenas ou sessões de cinema no Campo Alegre. Agora vem ela cá, porque Espinho tem destes argumentos. Que sorte temos. Uma sorte que devíamos – nós, os de cá – acarinhar e usufruir mais ainda.
Seguem-se, em Novembro, a Jenny Hval e, em Dezembro, o enorme Michael Gira, dos Swans, mas desta vez a solo. Depois não digam que não sabiam.
O outro Ovni traz-nos o cinema. O melhor do cinema, assim de mão beijada, a custo zero, por cortesia do Cineclube de Espinho. E, sim, estou a falar do magnífico Fest, essa pérola de cinefilia que decorre, regularmente, no edifício do Casino.
O Fest é um festival de cinema anual, pois claro, mas, para que não se perca o embalo e o gosto, o Cineclube oferece-nos mais filmes ao longo do ano, sempre com uma seleção de primeira água. Não sei quem os escolhe mas estou-lhes grata. De outra forma, talvez ainda não tivesse visto O Recreio (pequeno prodígio do cinema hiper realista que os belgas filmam como ninguém, prémio da crítica em Cannes, uma história sensível de crianças, com crianças, filmada a partir da perspectiva de uma delas). Seguramente, ainda não teria visto o Alcindo, extraordinário documento histórico do realizador Miguel Dores sobre um dos crimes mais vergonhosos da nossa história, enquadrado por todo o contexto histórico e social do antes e do depois dessa noite de má memória, em que um homem negro aleatório foi morto no Bairro Alto por uma chusma de neonazis, num país que guarda muito mal no armário o fantasma do racismo. Um documentário que devia ser de visionamento e reflexão obrigatórios para toda a gente; um daqueles sobre os quais (soube-o instantaneamente) continuarei a falar ainda durante anos.
E já está semana, na noite de Halloween, vi-me obrigada a falhar o Na Fronteira, filme sueco do mesmo argumentista do magnífico Deixa-me Entrar (quem o viu, lembra-se), por compromissos previamente assumidos de doçura ou travessura. Mas tenho a certeza de que teria valido a pena lá ter estado. Todas as sessões do Fest valem muito a pena. É ir à confiança.
Em novembro haverá, por exemplo, Vortex, do Gaspar Noé (muita atenção a este filme, e muito estômago para aguentá-lo) e o clássico incontornável do Vittorio de Sica, Ladrões de Bicicletas, entre outros. E não deixo de reforçar que são todos à borla; só têm mesmo de reservar bilhete e aparecer. Maravilhoso mundo, este. Espinho é lindo. É um privilégio. Aliás, são dois privilégios. Se estão cá ou perto, façam-se o enorme favor de os aproveitar.

Sandra Marques

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