Desporto
Gonçalo Noites: a história de um campeão do mundo improvável
Não teve um início de carreira brilhante, a ponto de ter sido questionado se devia continuar nesta competição, mas hoje é um exemplo de bravura, determinação e vitórias. Gonçalo Noites é, aos 23 anos, o primeiro português a conquistar o título de campeão do mundo de Muay Thai, na categoria de -75 Kg. Conseguiu o feito no passado dia 9 de junho, na Grécia, e acredita que os títulos que conquista ajudam a dar visibilidade e a captar mais adeptos para uma modalidade que equilibra e que terá cerca de quinze mil praticantes em Portugal, cerca de 3900 dos quais federados. Sonha com os Jogos Olímpicos e já está a preparar-se para os campeonatos internacionais do próximo ano.
É uma manhã de terça-feira chuvosa. Na sala de treino, a sinfonia da chuva que cai é interrompida por vinte ruidosas e pujantes circulares que Gonçalo Noites bate nos paos que o treinador Pedro Alves tem colocados nos braços. Essa espécie de luvas gigantes ou almofadas protetoras gigantes são atingidas pelas pernas do atleta com tamanha pujança e equilíbrio que, não ficam dúvidas, este é um dos exercícios-chave para trabalhar, em simultâneo, a técnica, a força e a resistência.
Nesta manhã molhada, quatro semanas depois de se ter sagrado, na Grécia, campeão do mundo de Muay Thai, na categoria de -75 Kg, Gonçalo Noites mantém a rotina de treinos na Iron Legs Academy, uma academia dedicada às artes marciais, fundada em 2015, em São João da Madeira, por Pedro Alves. O treino desta manhã consiste nos dois exercícios de que Gonçalo mais gosta: justamente, “plastrons ou paos, com batidas de pernas nessas almofadas que o treinador tem nos braços”, explica o praticante de Muay Thai, e “sparring, que é um combate simulado, entre colegas, mas com muito menos potência do que nos combates das competições, porque o objetivo destes combates simulados é aplicar as técnicas que treinamos durante a semana”.
Campeonatos internacionais de 2025 são próximo desafio
À data de hoje, o desportista faz “quatro a cinco treinos por semana, para se manter ativo e saudável”, diz o treinador Pedro Alves, e para preparar o “próximo desafio de combates profissionais, que será em novembro, em casa, São João da Madeira, cidade onde o Gonçalo não participa em competições há já quatro anos”, adianta o técnico. Mas na mente do jovem estão também já “os campeonatos internacionais de 2025”.
É desse foco incansável e dessa disciplina de treino que têm resultado as conquistas do campeão do mundo. Em períodos de competição, faz “treinos intensos, mas mais curtos, de uma hora, duas vezes por dia, de manhã e à noite, antes de ir para o trabalho e depois do trabalho”. Nessas alturas competitivas, treina “todos os dias, exceto aos domingos”, contextualiza o próprio atleta. Por trabalhar numa empresa de programação, no Porto, onde foi integrado depois de ter concluído o Mestrado em Engenharia Eletrotécnica e de Computadores, quando não está em provas, nem sempre pode fazer dois treinos por dia. Mas os que faz “podem durar entre hora e meia e três horas, dependendo da disponibilidade e do que queremos afinar”, afirma Gonçalo.
Leva o cumprimento das rotinas de treino tão a sério que “nem durante a pandemia deixou de treinar”, recorda o orientador Pedro Alves, já que “o desporto federado podia continuar, desde que cumprisse as regras” que foram ditadas pela Direção Geral da Saúde, pelo governo e pela Organização Mundial de Saúde. Por outro lado, mesmo quando fica doente, “o Gonçalo não tem muito tempo para ficar debilitado e, à mínima melhoria que lhe permita ter algum rendimento, começa logo a treinar, para não perder a forma”.
“Faltava-lhe aquele bocadinho que vem de dentro”
Até chegar à condição física que apresenta hoje e ao curriculum vencedor que ostenta, este jovem de 23 anos, natural de Cesar, em Oliveira de Azeméis, questionou-se e foi questionado sobre se estaria no caminho certo. Começou por experimentar Kickboxing, aos 8 anos, mas, na altura, não gostou porque “não tinha miúdos com quem treinar, eram só adultos”. Mudou-se para o futebol e também desistiu. Praticou natação durante seis anos e, aos 11 anos, pediu ao pai para “experimentar o Muay Thai”, porque um amigo do pai já treinava com Pedro Alves e falava-lhe desta modalidade. Gostou do Muay Thai, nunca deixou de o praticar e começou a competir nesta modalidade aos 12 anos.
Mas, no início, faltava-lhe algo. “Quando o Gonçalo começou a competir, era muito querido, tinha jeito, tinha técnica, mas faltava-lhe aquela vontade, aquela raça, que na competição é importante: o ser esperto, o querer ganhar, o querer fazer tudo para concretizar um objetivo”, lembra o treinador. Pedro Alves acrescenta, apontando para o coração, que “o Gonçalo fazia tudo bem, mas faltava-lhe aquele bocadinho que vem de dentro”. Não admira, por isso, que “nas primeiras vezes que subiu ao ringue para disputar as primeiras provas, ele perdeu sempre”. Perante o fracasso, o próprio treinador e algumas pessoas puseram em causa a carreira do agora campeão do mundo, equacionando “se o Gonçalo deveria ir praticar outra coisa ou continuar a praticar Muay Thai, mas sem competir”.
Nessa altura, recorda Gonçalo Noites, teve de “mudar um pouco a mentalidade e ajustar o mindset para a competição, para o treino disciplinado com vista à vitória, para o trabalho persistente”. Por volta dos 14, 15 anos, decidiu que “era mesmo isto que queria fazer e, a partir daí, os resultados começaram a aparecer”, garante o atleta. Depois desse “ponto de viragem”, a própria prática do Muay Thai “espicaçou o Gonçalo, ajudou-o a ser um jovem mais confiante e com mais poderio”, descreve o treinador, acrescentando: “ainda hoje, quando converso com o pai do Gonçalo, às vezes, até nos rimos disso, de como ele era quando começou e de onde ele chegou”.
Pedro Alves está, de resto, convencido de que os ensinamentos que Gonçalo Noites colheu desta modalidade tornaram-no não só “um excelente desportista, mas também um excelente profissional”. O próprio Gonçalo reconhece que exercita os valores da modalidade tanto “na vida pessoal, como na profissional, tanto no desporto, como fora dele”. E admite que, “seria hoje uma pessoa completamente diferente, se não tivesse começado a praticar Muay Thai” e que esta prática lhe “moldou a personalidade”, tornando-o mais maduro, mais ambicioso e mais responsável. “Nem consigo imaginar um Gonçalo que não pratique Muay Thai e que se não faça a competição, agora não consigo não fazer isto”, garante o desportista.
Esse crescimento e amadurecimento intelectual e físico permitiram-lhe ganhar o título mundial, “o mais difícil, no escalão de Elite, uma vitória que resulta de muita disciplina, muito foco e muito trabalho, ao longo dos anos”. Por ter sido a sua primeira prova num campeonato do mundo em elite, em sénior, admite que esta foi a que mais gozo lhe deu ganhar. “Ao longo dos dias da prova e à medida que ia passando as eliminatórias, cada vez acreditava mais que o ouro era possível e, a partir do segundo combate, estava mesmo confiante que conseguia ganhar o ouro”, recorda o medalhado.
Ser número 1
A experiência competitiva que tem faz Gonçalo Noites subscrever a opinião do treinador Pedro Alves que diz que o Muai Thay “ensina que não há impossíveis, que com trabalho, esforço e determinação, é sempre possível subir etapas e tornar o impossível possível, quer a nível pessoal, quer em termos de resultados competitivos”. No tom pausado e amável que o carateriza, Pedro Alves olha para Gonçalo e diz-lhe: “se calhar, acharíamos impossível seres campeão do mundo, mas cá está tu, número 1 do mundo e com todas as outras conquistas anteriores a esta”.
Além do recente título de campeão do mundo de Muay Thai Elite, na categoria de -75 Kg, Gonçalo Noites é também campeão do mundo de Kickboxing ISKA, título conquistado na Turquia, em 2022. Sagrou-se vice-campeão do mundo de Muay Thai júnior, na Tailândia, em 2018. Foi medalha de ouro no campeonato europeu júnior, na República Checa, em 2018. Conquistou medalhas de prata nos jogos europeus de Muay Thai, em -71 Kg, na Polónia, em 2023, bem como no campeonato europeu de Muay Thai júnior, na Turquia, em 2022, e no campeonato europeu de Kicboxing, em 2019.
Para quando modalidade olímpica?
Este palmarés não satisfaz Gonçalo Noites. Sonha poder “chegar aos Jogos Olímpicos”, apesar de o Muay Thai ainda não ser modalidade olímpica, e quer também “ganhar um cinto de campeão mundial numa liga”, entenda-se, numa competição profissional em que os atletas praticamente não usam proteções.
O treinador Pedro Alves resfria, no entanto, a ambição olímpica, dizendo que, apesar de o Muay Thai estar “a fazer o seu caminho para chegar aos Jogos Olímpicos”, apesar de a Federação Internacional mostrar que “é organizada”, apesar de a modalidade ter “conseguido uma série de vitórias, ao longo dos anos, no sentido de poder integrar a competição olímpica”, havia a expetativa de que isso “seria em 2024 e não aconteceu, também se falou em 2028, mas também não vai ser”. Assim sendo, conclui Pedro Alves, “o melhor é nós irmos trabalhando aquilo que gostamos no dia-a-dia, sem pensarmos muito nisso dos Jogos Olímpicos e não ficarmos iludidos”.
Ajudará a esta modalidade alcançar o estatuto olímpico o facto de estar espalhada pelo mundo e ser “praticada em praticamente todo o mundo”, admite o técnico. Portugal não é exceção. Esta arte marcial tailandesa, também conhecida como boxe tailandês, com cerca de oitocentos anos de história, terá “à volta de quinze mil praticantes em Portugal”, estima Pedro Alves, “cerca de 3900 dos quais federados”. Só no concelho de São João da Madeira, onde treina o campeão do mundo, há cerca de duzentos praticantes desta disciplina física e mental que permite o ataque, usando técnicas de punhos, cotovelos, joelhos, pernas e pés em golpes de combate em pé, mas não permite o combate no chão. Gonçalo Noites acredita que os títulos que tem conquistado “ajudam a dar visibilidade à modalidade e a atrair mais adeptos”. E o seu treinador não tem dúvidas de que “o facto de fazermos isto bem e com paixão leva a que mais pessoas queiram experimentar”. Além disso, “o passar de boca em boca, de amigos para conhecidos e também de pais para filhos, uns vão incentivando os outros”, também ajuda a despertar interesse pela modalidade.
Equilíbrio e toque
Na Iron Legs Academy, “a idade dos praticantes vai dos 3 aos 60 anos de idade”. A academia é frequentada por pessoas de “toda a região de Entre o Douro e Vouga” e de vários distritos. Vêm, por exemplo, “praticantes de Ermesinde, no distrito do Porto, de São Jacinto e da Serra da Freita, no distrito de Aveiro, e até de um rapaz que vinha de Ribeira de Pena, no distrito de Vila Real”.
O fundador da academia e treinador Pedro Alves ensaia duas outras explicações para a crescente procura do Muay Thai no nosso país. Uma delas tem a ver com o facto de esta ser “uma modalidade que equilibra”. Há casos de “jovens que têm tendência para ser um pouco violentos” e que “os pais ou os amigos” encaminham para a Iron Legs Academy. Pedro Alves descreve que “muitos deles, chegam cá, acham que são muito fortes, que são heróis, que conseguem fazer trinta por uma linha. Mas depois de cá estarem, percebem que têm de ser humildes, que há sempre alguém que sabe mais que eles, alguém que é mais forte que eles”. Essa “confrontação com a realidade equilibra bastante a pessoa”.
A outra razão está relacionada com a “desmistificação que se tem conseguido da ideia de que o Muay Thai é um desporto violento”, desmistificação essa muito decorrente do “cada vez maior número de praticantes de Muay Thai que provam exatamente o contrário”, assegura Pedro Alves, esclarecendo: “apesar de ser um desporto em que é possível o KO, se formos jogar a pensar em KO, se calhar, passamos o combate a procurar o golpe que vai provocar o KO, enquanto o adversário pode estar ali descontraído a dar toquezinhos e chega ao fim e ganha o combate, porque, no Muay Thai, se tocarmos mais vezes no nosso adversário do que as vezes que somos tocados, chegamos ao fim, temos mais pontos e ganhamos o combate”. Gonçalo Noites corrobora, dizendo “isto é um jogo de tocar e não ser tocado. Se tivermos um atleta bem preparado e outro mal preparado, claro que pode ser violento, mas também é para isso que há regras e que estão lá os árbitros, para parar ou para terminar o combate”. E acrescenta o deportista: “é uma modalidade como as outras, em que estamos sempre a aprender”.
Além da humildade, Pedro Alves vê em Gonçalo Noites outros atributos que contribuem para o sucesso do praticante de Muay Thai. “É um jovem com técnica, saudável, atlético e que nunca teve uma lesão grave”, enumera o preparador físico, mas “o que mais salta à vista é a inteligência com que ele joga, como se estivesse a jogar xadrez, colocando as coisinhas no sítio certo, na altura certa. Há atletas que procuram mais a parte da força, enquanto o Gonçalo joga mais com a cabeça e com o coração e é a cabeça dele que está a funcionar, durante a competição”.
O maior sacrifício
Gonçalo Noites reconhece que “o foco e a disciplina são o mais importante, se queremos chegar a algum lado, se queremos progredir no desporto, na nossa carreira”. Essa disciplina passa também pela alimentação, pelo que é orientado por um nutricionista, para poder estar no peso exato e cada categoria que disputa. Diz Gonçalo que “nas semanas anteriores às provas, tenho de fazer dieta para baixar o peso e, durante as provas, vou regulando o que como, porque temos de nos pesar todos os dias em que combatemos”. E não esconde que “o que mais custa nas dietas são as quantidades porque, às vezes, queria comer mais, mas não posso, só posso comer um bocadinho de arroz ou de carne e é um sacrifício que tenho de fazer porque, no peso, todos os pormenores contam”.
Por ser um verdadeiro desafio estar no peso certo para a respetiva categoria, Gonçalo repete o que se diz na gíria da modalidade: “é quando se faz a pesagem que se diz que o primeiro combate está ganho, porque aquilo é mesmo um combate e custa um bocadinho não poder comer o que se quer, na quantidade que se quer”. Um sacrifício necessário porque, “se falha alguma coisa na alimentação, no descanso ou nos treinos, não se consegue o resultado que esperamos”.
Os familiares e os amigos são o grande suporte de Gonçalo Noites. O treinador diz que “a família que ele tem é uma base que não há igual, é um suporte constante, quer para o bem-estar dele, quer na perceção da modalidade, atendendo à relação que a família também tem com a modalidade. A família do Gonçalo são os seus fãs número um”.
Não obstante passar muito tempo fora de casa, nos treinos, e fora do país, em competições, o jovem afirma que “dá para conciliar tudo”. Está com os amigos “às vezes, à noite, depois do jantar, um bocadinho”, porque tem de se “deitar cedo e levantar cedo, para trabalhar e treinar no dia seguinte”. Encontra-se também com eles aos sábados à tarde, uma vez que treina de manhã, ou aos domingos, dia que não treina.
Já conciliar a competição com as despesas associadas pressupõe alguma ginástica financeira. “Não temos grandes apoios financeiros”, diz Gonçalo, referindo-se, sobretudo aos atletas não federados. No seu caso, que é federado, quando vai às provas, a Federação “paga as viagens e a estadia, mas tirando isso, tudo o que é suplementação, treinos, equipamento, sou eu que pago tudo”, assegura o praticante de Muay Thai. Mais dispendioso ainda torna-se o facto de não receber remuneração pelo dias que falta ao trabalho para competir. “É uma espécie de licença de curta duração, sem vencimento”, explica. O treinador confirma que Gonçalo “só teria prejuízo financeiro, se não fosse federado, se não tivesse medalhas”, que levam o Estado a conceder-lhe um determinado valor, por ser medalhado.
Gonçalo Noites está empenhado em “continuar a competir” e não pretende parar, “enquanto não tiver uma lesão séria”. Essa determinação agrada ao treinador, que não esconde sentir “uma emoção enorme, uma sensação indescritível”, cada vez que os atletas que orienta conseguem uma vitória num combate. Explica Pedro Alves que “por muito pequena que seja essa vitória, há a satisfação e o orgulho da conquista e essa conquista contribui para a autoestima do atleta”.
Pelos outros e para os outros
Pedro Alves, que começou a praticar Muay Thai aos 6 anos e a competir aos 8, decidiu deixar a competição e dedicar-se “ao ensino da modalidade” em 2012, porque começou a “dar uns treinos e umas aulas a pessoas que pediam” e percebeu que “no fim do treino, as pessoas ficavam satisfeitas e eu gostava muito de transmitir o que sabia e o que tinha aprendido”. Essa “predisposição natural para os outros” fê-lo sentir que “estava ali para espalhar a modalidade e para fazer crescer este desporto”. Pedro e Gonçalo estão, por isso, em sintonia no conselho que deixam a qualquer criança ou jovem que queira experimentar o Muay Thai ou começar a praticar Muay Thai. Ambos concordam que “esta é uma forma de moldar o futuro dessa criança ou desse jovem”.
Gonçalo um jovem cheio de talento. Desconhecia a modalidade de Muay Thai. Desconhecia os seus prémios conquistados. Parabéns ao seu treinador. Até me dói as pernas só de olhar para aquelas patadas😀
Um jovem com grande talento. Um trabalhador. .,
São reportagens como esta que mostram o esforço, talento, regras, privações dos GRANDES. E o Gonçalo é grande.
Eu também pratico a modalidade em Leiria. Hoje sou uma outra pessoa…posso dizer que o MT mudou a minha vida…
Que presença espetacular tem o Gonçalo. Onde é a escola? Sou de Setúbal. Obrigada.
Um jovem cheio de talento. Que orgulho.
Que belas pernas. Até fico sem ar de ver. Vais longe e Portugal já tem e terá ainda muito orgulho na tua carreira. Venham os Jogos Olímpicos.
Cátia Rocha
Vila Real