Opinião
A bela Inês: um caso de autismo severo
Ninguém estava preparado para o diagnóstico de autismo aos 3 anos.
15 de novembro 2024
Por isso, primeiro a negação, mas rapidamente a aceitação plena baseada no amor incondicional. Felizmente, desde o nascimento que a Inês tem sido uma criança, agora adolescente, muito estimada, muito amada, com palavras e ações não só da mãe, mas de todos os que com ela convivem desde o berço, especialmente o avô e os outros elementos da família materna, sem esquecer o incansável padrinho, a quem devemos muitas das suas alegrias.
Com um ou dois meses de vida, o avô paterno viu na agitação das mãos da Inês a insegurança de um gatinho assustado. Mas nada que preocupasse a mente e o coração da família.
A Inês era a primeira e única neta!
A Inês era a primeira e única filha!
Os meses foram passando pela vida da Inês e da família, e as possíveis vantagens de ingressar num infantário entre o primeiro e o segundo ano… Até que a Inês começou a revelar sinais de mutismo seletivo, segundo uma equipa interdisciplinar liderada pelo seu pediatra do desenvolvimento; porém, com o decorrer do tempo, começou a abanar os braços e a deixar de falar o pouquíssimo que falava. Mais ou menos à entrada do seu terceiro ano de vida, e face à suspeita de que as suas características poderiam indiciar um possível enquadramento no espectro autista, o pediatra do desenvolvimento recomendou uma consulta com a Dra. Guiomar no Hospital de Coimbra.
O veredito veio então de Coimbra, tinha a Inês três anos: autismo severo!
Foi a partir desse momento que a família paterna começou a afastar-se (foi um afastamento progressivo, limitando-se em geral a comparecer em certas efemérides, sobretudo no aniversário da Inês e, aos poucos, é um (quase abandono total); enquanto a família materna aceitou de forma incondicional, adaptou-se à nova vida e passou a ser uma retaguarda fundamental, sobretudo o avô e também o padrinho.
O mais difícil é a Inês não falar (não sabemos se não consegue ou se é a inflexibilidade própria do autismo que não lhe permite dizer quase nada, para não dizer nada) e ter crises por talvez não conseguir expressar-se, talvez seja uma tristeza profunda ligada à frustração.
Temos consciência de que somos nós que temos de nos adaptar à Inês e ao seu mundo e não ela a nós e ao nosso mundo cheio de subterfúgios, segundas intenções, linguagem metafórica, ironia e sentido de humor, aspetos que os autistas em geral rejeitam.
Nós nem sabemos as razões objetivas e subjetivas da resistência que a Inês apresenta em relação à dor, ao frio, ao calor; não sabemos o impacto impressionante das cores, do movimento – apenas sabemos que a Inês é sensível à paleta cromática, adora a chuva e o vento, a velocidade na autoestrada (por isso mesmo, nos passeios regulares de automóvel, ao sábado, percorremos perto de cem quilómetros nas ruas e estradas, entre a cidade em que vive e/na costa minhota, a fim de proporcionar à Inês esse encantamento da velocidade), as nuvens carregadas e a chuva, mas também o sol intenso e céu límpido, o marulhar das ondas do mar e a acalmia das águas marinhas, a brisa e o som do vento a soprar, o abanar das árvores, o avistamento de animais e crianças, sobretudo bebés… e a sua inseparável música do Youtube, vídeos vários de habilidades, fotografias, etc. E uma atenção impressionante quando nos ouve a falar, sobretudo se o seu nome está explícito ou implícito nas conversas. A Inês gosta de ser elogiada, mas nós só o sabemos pela mímica, por um breve olhar para o lado e um subtil sorriso que não quer demonstrar… É o sorriso do afago, o sorriso da alma!
A Inês anda numa escola dita normal, inserida numa unidade de ensino estruturado – uma sala para autistas, com professores do ensino especial que programam atividades adequadas ao perfil destes alunos –, desfrutando ainda de terapia da fala, terapia ocupacional, psicologia escolar, hidroterapia e hipoterapia (chegou a ter terapia canina). Todavia, os alunos do espectro autista estão integrados na escola (educação inclusiva) e, como tal, integram as turmas ditas normais, participando nalgumas das suas atividades, nomeadamente na disciplina de educação física e numa ou noutra disciplina igualmente prática.
Em resumo, na escola, a Inês é bastante cumpridora das regras estabelecidas e aceita de bom grado algumas interações com os professores e pessoal não docente… Ela percebe claramente que a escola é um espaço de condicionamento social!
Para ajudar a cuidar da sua saúde, a Inês tem consultas regulares com o médico de família e uma enfermeira, o pediatra do desenvolvimento, a médica de medicina dentária e ainda com o pedopsiquiatra, que lhe prescreve a medicação mínima e necessária, adequada ao seu caso, para regular os picos de angústia ou tristeza profunda e a agitação excessiva, com os respetivos episódios de agressividade.
Relativamente à sociabilização, mais do que querer estar sozinha (a curtir a sua música, os seus vídeos, as suas brincadeiras solitárias), a Inês precisa de espaço e de tempo, mas no geral não é recetiva ao toque alheio nem a grandes interações; na verdade, a Inês parece ignorar completamente a grande maioria das pessoas, incluindo os familiares mais afastados do seu dia a dia.
Por outro lado, até parece que a Inês consegue ler a mente das pessoas e a sua própria sensibilidade, já que, num ápice, descobre quando os interlocutores são afáveis e autênticos, verdadeiramente amigos (confiáveis, na sua perceção, ainda que não o verbalize), ou quando são movidos pela mera representação.
Mesmo com as pessoas mais chegadas, a Inês é empática quando quer, não é de fazer fretes, aspeto que também está relacionado com a inflexibilidade típica da perturbação do espectro autista.
Quanto ao dia a dia, tudo se baseia em rotinas de forma a ela se sentir segura e estável. Em momentos de crise, a melhor solução é mudar o contexto – por exemplo ir dar um passeio – mas, na maioria das vezes, damos-lhe espaço.
De realçar que ao longo dos anos, nós, os que vivemos com a Inês, ou muito próximos em termos de espaço físico e emocional, tivemos de fazer importantes aprendizagens a fim de melhor a compreendermos, de melhor podermos conviver com ela, nomeadamente ao nível da comunicação em que o seu toque faz parte de um código fundamental (no ombro, no cotovelo, no braço, na barriga, mas também pegar nas chaves, abrir o frigorífico e os armários, pegar no telemóvel e mostrar a fotografia com a qual quer comunicar alguma coisa ou desejo), mas também o olhar, o sorriso ou a sua ausência, o abanar dos braços, o choro mais ou menos sonoro, dependendo do mal-estar ou problema de saúde, do nível da frustração e/ou da intensidade da tristeza (aperta-se-nos o coração, dói a alma ver a Inês mergulhar numa angústia sem fim e nada podermos fazer já que nesses momentos prefere o isolamento no seu espaço), para além das estereotipias, as quais apenas uma ou outra são fixas, enquanto as outras vão sendo substituídas.
No que se refere aos benefícios sociais resultantes da sua condição, a Inês recebe o abono de família com bonificação por ser portadora de deficiência e também a prestação social de inclusão.
O quadro geral de saúde da Inês não tem sido linear. Nos primeiros anos de vida passou por vários problemas de saúde relacionados com as vias respiratórias (em geral bronquiolites), amigdalites, gripes e constipações. E, pelo facto de deixar de comer sempre que ficava doente, ao fim de seis a sete dias sem comer tinha de ser internada para ser alimentada e medicada pela via intravenosa, pelo que foram momentos de muita angústia, muita tensão. Com o passar tempo, sobretudo a partir dos oito-dez anos (neste momento tem dezasseis), a Inês teve e tem períodos de evolução e de retrocesso a vários níveis (por exemplo, chegou a frequentar a piscina, devidamente acompanhada, mas passou a recusar, deixou de apreciar a praia e os passeios pedestres), sobretudo agudizaram-se a instabilidade emocional e as crises de irritabilidade com comportamentos agressivos, pelo que o pedopsiquiatra prescreveu-lhe risperidona e sertralina; acentuaram-se as claras evidências de rejeições alimentar episódicas, para além de continuar, desde o berço, a ser muito meticulosa na separação e ingestão dos alimentos e bebidas.
Ao nível da comunicação verbal, neste momento raramente pronuncia uma palavra ou outra (só mesmo em situações limite) e, já dentro deste novo ano escolar, adotou uma nova estereotipia, que consiste na emissão de sons repetitivos.
Finalmente, e embora um mês de vida da Inês pudesse dar um livro ou um filme, resta salientar que a Inês é uma criança/adolescente bastante feliz, talvez porque se sinta verdadeiramente estimada, acarinhada, amada.
Como mimos do quotidiano, entre outros, destacamos dois:
1 – o passeio no carro vermelho: todos os sábados a Inês vai passear no carro do avô materno (perto de 100 quilómetros entre o interior e a costa minhota), na companhia deste, do padrinho e da mãe, passeio que culmina com uma refeição em geral constituída por bife de frango ou peru, batatas fritas e um sumo (por vezes participam a tia e a avó maternas);
2 – massagem e energia: todos os dias, recebe uma breve massagem das mãos da mãe, que, com alguma frequência, também lhe administra uma breve aplicação de energia reiki como parte de uma rotina que lhe confere harmonia e tranquilidade;
3 – o banho: todos os dias, o contacto inevitável com a água na banheira, com um, dois, três, chegando a ser quatro banhos diários, justificáveis, não só porque a Inês aprecia muito a água morna no seu contexto habitacional, mas também por razões de higiene, considerando que a Inês ainda usa fraldes, pelo que é necessário um cuidado especial, também ao nível da sua higiene e asseio.
A Inês é uma princesa!
Joaquim Alves Vinhas