Opinião

Mundo de Princesas XII/XV

DOZE

Foi evocado o fim da linha, a solidão a olho nu, a soledade perfeita, o preito a escrever a morte em versos de vida, a escrita de pedrosa, debruada e fina de subido oiro e linho, não a que depois de morta ficou princesa depois do assassínio com desonrosa hipocrisia, mas a outra, os outros, as outras, tantos, eles, elas, os e as que choraram na vigília e no sepultamento, e três dias decretei um hino entoado às mães, a todas não, senhoras e senhores, mas àquelas e àqueles que da vida fazem honesta viagem e porfiam na dignidade do ser: até que a memória se recorte rente ao chão num desenho gordo e colorido, a dor que não suporto mais, e hei de suportar ainda, depois deste abandono escuro a que sucumbo, mãe, até ao sétimo dia fiquei a falar com a minha virgem maria, viva e todavia perecida, escrita na torrente de um frio inexprimível, um cortejo de dor extremo a recontar a vida que se finou.

Fazes-me falta, pedrosa. Inês de maio.

Sete vezes sete mãe estarás comigo senhora da minha hora minha vida, dona dos meus pronomes e aflitos sonhos, apelidos meus e teus e os do pai que sabes estar no céu a descansar no frio, todos vividos na cercadura da nossa casa, nossa morada, nosso abrigo: a tua arquitetura é uma estátua de sal, a tua escultura o sorriso largo do mundo, o hino que te canto é universal, tórrido e pesaroso, diluviano e distendido no tempo, a Catarina sabe que andas em viagem prolongada e demoradamente permanecerás a ver a mundo sem garantias de chegada.

Não houve lírios brancos que escondessem a avenca da fúnebre rotina, tudo era indecente mãe, vieram as algas do verde musgo e marinho, um pensamento sóbrio a condizer com o meu choro miudinho, era o frio mais frio do nosso agosto de caldo arrefecido.

Eternamente viverei o remorso da ausência, fazes-me falta, mãe. A procissão construiu-se dos silêncios mais reentrantes, interrompidos apenas pelas carpideiras do costume, as mulheres ávidas da morbideza, que sempre as há em cada lugar e em cada tempo, sonoras e trombetistas vozes da morte, os homens não choram porque fica mal. Correu o verde tinto ao lado na cozinha, agora as pazadas de cal e do barro escuro até que se note a saliência da tumba.

Fazes-me tanta falta. Não houve nem haverá cova da iria, a ela iria por ti um milhão de vezes para a ressurreição de que não há crença bastante não há.  A tua bíblia jaz na estante arrumada dos meus livros.

Requiem agnóstico, rito de proféticas verdades inscritas no poliedro dela, a verdade de ser a mãe dona da alma e do coração quando se é por inteiro mãe, e pai também, que se não houvera este, aquela se negara a germinar fora do amor. Obrigado a ti pai, bendita sejas tu mãe, agora que estais na urdidura do céu a dormir na imortalidade daquele que foi o vosso senhor: no mortal esquecimento.

Antonieta, Madalena e António omitiram a sombra da bondosa matriarca a Catarina, que ficará a ver passar os dias na espera da mãezinha, aquela que ficou a ser esquecida numa viagem longa, muito longa, de impossível retorno à terra e à casa, viva como sempre minha querida mãezinha, e dizia em jeito de interrogações a que se respondia com a verdade da mentira possível:  quando ocorrerá o regresso, lembra repetidamente a petiz grande e enorme, a do largo sorriso, nunca mais vamos ao natal enquanto a viagem da luz não tornar à nossa aldeia, eu gosto tanto da terra do meu pai meu marido meu filho meu tudo. As pessoas não deviam viajar tanto tempo nem devia haver guerras nem fome no mundo pai eu sei a mãezinha um dia retornará e outra vez haverá natal se o houver.

Em cada ano, será lembrado o aniversário expedito na viva memória da casa grande: a luz do olhar impede o perecimento: Catarina mantém a chama da vida sobre a ocultação da morte. As pessoas não deviam morrer. Pai, tu não dizes para onde foi a mãezinha, mas eu sei, pensa no rosário e no almanaque e nos outros presentes de natal tudo se vai arranjar tu és lindo.

A uma certa redondeza da voz e do ventre, desenho circular da mente, assemelhava-se uma pequena curva no cérebro, um inchaço talvez, a alma começara a invadir o corpo todo, primeiro nas artérias e nas veias mais à flor da epiderme, depois na interioridade da carne fincada nos ossos e assim sucessivamente até ao âmago de todo o esqueleto. O luto inesperado chegou também ao tutano e misturava-se agora com o nojo dos vivos que andam a morrer com os bonsais esquecidos.

Até as pequenas árvores andam a morrer, Madalena, os arames oxidaram contra a evidência científica e a tesoura de os podar enferrujou naturalmente. Eu sei, homem enlutado, vejo-te dentro dos olhos a escuridão da cova da iria, a mentira que passa, a tormenta passará, há de cantar. Mariza.

Sentia que se deixou conceber involuntariamente, um homem grávido de vida sobrepujada nas praias da morte, era de quem, de todos, até ao cerne, de quem, só podia ser do tempo que faz, imaterial, essa entidade abstrata com o seu imaculado manto de cobrição: o equinócio estival era-lhe propício a descobertas e nunca o havia exposto, foi preciso esperar meio século para reparar neste verão de caldo: ficou realmente grávido dele próprio, do amor que escondia dos raios solares, certeiros, deificados, e do seu casamento com o mar. Celebrar a vida pelos clichés e avenidas da duração que pode perdurar depois da mãe que ficou, depois da Antonieta que continuará a ser.

A tormenta passará nas inquietudes do fado, neste calor gregoriano de setembro, enigma de fazer bem a todos os sentidos conhecidos e por conhecer.

Setembro é enorme e o mar azul, a saudade que não mata, mas que leva a um viver abreviado, a pulsação do amor que é urgente ter, o telefonema feito à mãe depois da sessão no hospital fizeram de António uma criança grande, tão grande quanto a Catariana, cujos olhos porém não podiam ver o seu choro de homem criança, nem a sua vontade de morrer: acordou suado e com vontade de viver. Pensou num plano de paz, a começar num armistício, foi um brevíssimo baque com o valor daqueles que decidem desfechos de guerra. Tanto mais que a mãe feneceu, tão fulminante mãe: urge cuidar dos vivos, como dissera carvalho e melo no depois do grande terramoto.

Oh, mãe, fazes-me falta, repetiu. Houvera um dia paz na terra quando todos houvéramos sido Catarina, cessariam as mortes e os conflitos nas partilhas de heranças, os vizinhos aprenderiam a ser vizinhos como soía sê-lo devia, os que governam os países aprenderiam a ser gente, quiçá diminuída ainda, mas humanamente.

Não te deixaram aprender a conversão da moeda nova e europeia, davas euros por escudos, mas esta era uma aflição de que te rias, abraçada à Antonieta primeiro, depois à Catarina: trindade santíssima.

António começou a reunir num bloco de notas os trapos que o seu estado aconselhava. Sentiu a precocidade de dores tensas e benignas, seriam contínuas dores de um parto espiritual, não, era fome, uma fome faminta e nesse estado assim animal, emprenhado, minguante e cheio de raiva recordou então Antonieta com a cabeça exposta no regaço da mãezinha, sempre a Antonieta. Poça, a criança não me larga a alma. Quem afinal me está engravidando. Que despedida mãe.

Aquela frase não se morre de saudades, atirada assim como quem finge não querer dizer nada, ficou-lhe a bater forte. Foi acometido por um longo e tormentoso trovão de saudades: queria ver uma vez mais aquela mulher forte no seu rude monte de bondades, naquele instante, e implorar-lhe perdão por todas as faltas, sobretudo pelas prolongadas ausências, do amor ela sabia. Aquela mulher agora no céu merecia-lhe tudo e nada era o que António lhe havia dado, sequer a crença no seu deus que mata quando quer, sem intermitências, José. No próximo natal cobri-la-ia dos mais preciosos presentes, contanto que não fossem escandalosamente caros a pretexto da crise que grassa, está tudo tão caro, mas uma mãe merece ser princesa do mundo. Meu deus, perdoai-me: eu não sei o que faço.  Por que morreste.

O teu abraço deu razão ao meu espaço, estátuas de lume pinturas de fogo nos teus olhos dentro dos meus, aquele abraço incandescente arrastou o meu corpo num afago de copos, tu sabias-me José arrefecido. Bebedeira de amor em disfarce de amigo, José.

Foi então que se lembrou do seu velho livro em branco que lhe fora regalado nos confins do primeiro ano da faculdade, amarelado pelo tempo dos homens, segunda edição, publicações alfa recomendável, como vinha na capa, para escritores, jornalistas, artistas, atores, políticos, amantes, poetas, técnicos, estudantes, desenhadores, turistas, decoradores, engenheiros, homens de negócios, viajantes, secretárias, e para oferecer a todos aqueles que sempre desejaram escrever um livro, fim de citação; escusar-se-á a transcrição repetida em vernáculo de outras línguas, no caso o inglês e o francês, impressos na contracapa.

Melhor seria, sob o ponto de vista de António, incluir nas notas que pretende rabiscar em jeito de trapos do seu novo filho algumas das palavras que ilustram a mísera amostra de libreto, ensaio do paradigma, como aquelas que diziam: pítia! / não mintas ao coração, / sacerdotisa, / e diz profética e altiva, / do meu olimpo apolo, ou então, mais prosaicamente, trasladaria um pedaço de prosa solidária, se esta palavra não houvera sido viciada, que arrumara numa espécie de laudas, sobrevindas de um outro tempo ou estado trivial, decerto houvera também engravidado de amores por homens, psicólogos e psiquiatras e afins, regurgitou enfim aquilo a que chamou: verdades de um certo mundo cão,

firme e esfarrapada és a criança da noite e dos dias escurecidos, das joias e do mercedes do papá, filho de uma bola de cristal baça que se quebrou nos acidentes do chão vil que te pariu, onde tudo cresceu menos tu criança, sem direitos ou com direitos perdidos, filho de uma ejaculação precoce arrependida, com a cueca azul feita dum tecido entorpecido, dispersos e ferozes os gritos que te negam e ladram a normalidade em bicos de pé, que ladram, banais, para que engordes o teu esqueleto de cão cumprindo-te na solidão escura negando a que dizem aberração, sempre azul sempre meu amigo, como a virilidade que aparentas, e exibes, e tens, e ai de ti se fazes ou desfazes os cacos pelo chão do salão nobre, e se cospes fora do lugar apropriado, terás trato de ávido animal e como cão abandonado entrarás outra vez no hospital da demência onde honrosamente ficarás para não seres mais tu como és, inteiro e andrógeno, por isso cumpre-te macho e cão arraçado se queres vegetar e morder o aroma rosa de uma mulher senhora do altar da casa senhorial e, assim, tumultuoso e só,  entrarás a todas as horas da noite e do dia que foram destinadas, vigiadas, fingindo que houve e cresceu em ti o engano do amor andando eros à solta algures por onde os homens e as mulheres se perdem, e despejarás prazeres, daqueles que a lei dos maiores dizem teres de sentir e se os não sentires mentirás porque azul é a cueca que tiras homem macho feito cão pela prostituta de uma vida cadela, com perdão das putas e dos cães que pingam dignidades, e irás lavado ao domingo beijar a mão do papá e da mamã, e àquela mulher da tua vida decidida nos corredores do hospital, a essa, beijá-la-ás em êxtase para que te vejam curado até morreres e daí lançares ainda um último olhar de homem cão… e o sepulcro defender-te-á e nunca mais verás o mundo a continuar cão até lhe darem um rosto sem máscaras estilhaçadas, partidas ou inteiras mas um rosto limpo e humano, selvagem, e uma cor mais humanizada. Cessou o tempo de cortar a pulsação. Dedicado a um amigo que partiu, disse.

Depois de pedir desculpas ao cão, a Antonieta, a todos os deuses e à vida, e de ter rezado pela mãe, remexeu uma vez mais freneticamente o baú dos papéis velhos e resolveu dar anonimato a uma glosa, devidamente retocada, que por sua vez fora uma meditação sobre um poema outro de Sophia de Mello Breyner Andresen, deste nome lembrava-se, se se lembrava, dizia, querida Sofia:

não darás mais ao mundo caras de palhaço, / não serás mais amante do pedaço de carne morna, / não beberás mais vinho com o vinagre de maio, / não comerás mais pão alevedado sem sal, / não amarás mais senhora que possa morrer.

Se agosto fora de luz, setembro é brasa e demanda leituras de sorvete em punho, com licença meus senhores e minhas senhoras: ele era o pessoa, era a espanca e o carneiro que se matou em paris com vinte e cinco anos, tão jovem tão partido; ele era sofia a dolorida e saramago o cético o comunista hormonal e os que lia na livraria grande do shopping e não comprava, com perdão de todos os outros omitidos, este fica pra dezembro que o verão não dá para todos, o camões da nossa praça, os das praças estranhas foi só um folhear.

Se a Carlota por aqui andasse, outra vez era roubar outra vez furtar: não António, eu nunca roubei um livro, simplesmente eu pego, a tua Antonieta tem de nascer outra vez para me denunciar, como vai ela meu amigo fingido, ao meu Miguel não vai ela levar a mão nem a pila não, depois do meu adorado divórcio entregou-se o meu filho às ilícitas, agora anda ele a apanhar, não serve nem para copular, desculpa a linguagem António, sabes bem que eu sou fodida, eu sei ser uma senhora, mas também muito puta quando a isso me obriga a dignidade.

Se roubo, continuou, diz à tua filha, é a virgindade aos homens e quando acontece e quero, quando não me custa despir, gosto de dizer-lhes que sou eu a mandar, a comê-los, a vergastá-los, não tenhas medo das palavras, a moral burguesa está saturada de palavrões eruditamente escondidos. A última vez que chorei pelo Miguel, António, não me reconheci Carlota e dei-lhe dinheiro para comprar heroína, dinheiro pago agora em euros, em fase ainda de conversão.

O nosso professor da faculdade, António, foi a um hotel da cidade dos estudantes matar-se, depois do roubo da droga na ribeira, lembras-te.

Podia andar a engordar, também, daqueles homens e mulheres desvividos na sua perpetuidade, que lia e ouvia e quase declamava, que grotescamente imitava sem saber de o haver feito nem que nos imitamos uns aos outros em prol da segurança entre o berço e a cova. Era ainda uma pergunta que se fazia.

Das luzes camonianas nem falar, é quase pecado nos dias que correm: monstro sagrado da nossa filologia: desavergonhada, a dar letras ao mundo e a vender o parecer imperial. Toda a ideia é epocal.

É certo que António gosta de o ler, mas sem presunção, particularmente depois que lhe apanhou algumas frases, sempre em forma de estrofes: foi o sena o Jorge de, credo, outro grande, ele há tantos monstros da nossa linguazita, quem lhe abriu o caminho para melhor entender o todo do autor dos lusíadas, no entanto, gostava era da sua lírica pela música cantante do amor de quinhentos.

Dizia melhor com a sua personalidade. Camões épico era belo e imperial, mais verídico e didático ao serviço do regime, ensinador do português lusitano, mas ele achava-o medonho, com pátria a mais.

Um livro é um livro, mesmo quando não há nada nele, lembrou-se da celebridade e pensou no estatuto das pessoas importantes. Byron, o romântico, para quê tanto diletantismo.

Também serve um livro para arder numa fogueira: pergunte-se ao inefável santo ofício da história as mortes que arderam: memória insigne da nossa memória ardente. Foi ainda deste maltratado livro, tão sujo e quebrantado, oh, que António arrancou a folha onde havia tomado nota daquele seu esgar parido em: la formentera, la divina, mi amor.

Descontando as suas próprias citações, tinha dificuldade em começar a anotar, havia dois, três anos que o não fazia no livro em branco, vertia agora diretamente exangue para o computador, não manuscrevia, maquino escrevia. E saía cansado de cada maquino escrita que fazia, feita e sempre por acabar, como a doença de Antonieta, retocada, polida, redesenhada, embrutecida.

Dera-se conta que não passava de um embuste em estado bruto, tinha disso a mais pura e sincera consciência. Mas também não devia, nem podia deixar-se nas mãos de um destino dramático e fatal, decerto a doutora tinha razão, está na hora de novas sinergias; havia que amadurecer o plano de paz e, por opção, como o cão que resolvera partir em busca de um novo dono, ou dono nenhum, sem dono no antigo e tradicional sentido, convenhamos, sentiu que era dono de si, escravo do seu pulsar, pronto a continuar.

Uma invencionice, era o que fora no papel de salvador.

E no entanto, desencorajando o instinto, deixou-se guiar à toa pelas luzes da razão, tomou sucos de uma frase lapidar, sulcou uma folha com um azul discreto mas firme; uma segunda frase e uma terceira e por aí adiante saíram-lhe sonantes, tocadas por arrebatamentos felizes, intelectualizados, quer dizer, filtrados pela luz fria e calculista de um pensamento matemático e geométrico, e positivamente decorados com sons e cores e palavras e ecos impiedosamente descolados do seu dicionário de doze volumes comprados a um desventurado na feira de Vandoma, isto quando a turba se reunia ao redor da sé.

Após escrevê-las como quem faz um filho desejado, com intento de vingar, para vir mesmo, programado, com carinho e caneta ou teclado criativos e suados, amassados, lambidos, relia-as, tornava a relê-las, concluía e bramava para consigo: pastiche, uma merda, uma sensaboria, rosnava. Rasgava.

E assim permaneceu horas a fio a rasgar e a escrever, a digitar e a deletar, a mal dizer o bendito tabaco que sabia fazer-lhe mal, a fumar, por fim a desfazer o maço até doer.

Quando o sol ia já na curva do horizonte, na despedida da gente deste mar, travar as nossas batalhas noturnas noutras marés doutros mares diurnas, aquecer outros corações e inundar de lume outro estio, cedeu ao pulso das emoções e dos lábios carnudos e vermelhos de António, saiu uma curta história, familiar e antiga, a mais antiga história que lhe habitava a memória. Para trás, tudo é opaco, quiçá sede e choro.

Vieram à luz então brevíssimos fragmentos de António herdeiro dos gagos antoninos.

Tinha quatro anos quando o avô paterno se finou: a linhagem masculina, que se soubesse, começara em Antonino havia mais de duzentos anos, até lá onde o estudo chegara e dali não saíra por culpa da roda, que muito inocentemente carimbou um menino gago ali deixado, depois abençoado com o nome romano e cristão de antonino: depois de mais de dez gerações todas em viveres da exclusão salutar mas sem o abandono num qualquer contentor, havia resvalado o nome para António, sendo o nosso António o último portador do nome desta família que agora se exibe, pública e notadamente, nos primórdios do novo milénio, como a família dos gagos antoninos, antoninos é sabido porquê, gagos já se está a saber também: prevaleciam gagos todos os machos da família.

A herança genética orgulhou-se da obra feita, o sofrimento dos malfadados não tem emenda, venha quem lhes acuda: António é um farsante gago e sem cura.

Todos os netos perfilados à maneira indiana foram beijar-lhe o rosto da mortalidade, bem visível naquela cara gorda e branca como a cal. Estendido sob o lençol branco ainda quente, de fino linho, barrigudo e quase sem cabelo, até nisto são parecidos avô e neto, morto, tozito, só mais tarde é que passou a ser tó e depois, no trânsito para a vida adulta selado pelo casamento com Madalena, António mais não fez que simular um ruidoso beijo que não deu frente ao olhar sinceramente triste e desconfiado da mãe, não que tivesse medo ou não gostasse da morte mas porque receava e temia o avó vivo.

Podiam encontrar-se no céu, essa era sempre uma possibilidade apregoada pela religião desde tempos imemoriais, mas podia ser que o inferno viesse a transmutar-se em local de cómodo e feliz acolhimento para crianças desvalidas, desabrigadas e horrivelmente gagas em vida de anciões empedernidos.

Sobre a sua primeira história de vida ficou-lhe a reflexão azul sobre o fundo branco; depois de muito acudir se sim, guardava, se não, rasgava, decidiu-se:  queimou o caderninho das histórias remotas do era uma vez, sentiu o voo no espaço daquele fim de tarde. Foram-se as cinzas com a nortada: a verídica história será escrita num prodigioso e autêntico mundo de princesas.

Ao avô de António sobrou um corpo incorrupto por tempo de sete anos, sete vezes sete, passaporte para a eternidade, do terrenal corpo, da alma não sabemos nada. O cortejo fúnebre foi lindo de se ver, cobriu de povo graúdo e miúdo o verde dos carreiros do campo até à estrada municipal onde deu forma definitiva à composição, uma música de cores distintas, o preto e o cinza branqueado, os verdes e os vermelhos vivos e os demais tons, deram vida simples ao quadro da morte acontecida: da capela aristocrática da casa sem brasão ao adro majestático da igreja paroquial de estilo entre o maneirismo e o barroco provincial, o cemitério coberto de lumes cujas faíscas decerto só ele via, e acreditou que o avô rabugento e santo tinha acabado de entrar no paraíso. Um cemitério de gozo íntimo e cerimonioso, o cura bem bebido, tudo a condizer com a promessa de santidade.

A beber, António, ou a intrometerem-se as ervas aromáticas, quem sabe se folhas de marijuana no chá das cinco: a escolha fora do leitor, se o houvera.

As mulheres da casa ficaram a chorar e a esquecer o último antonino que acabara de partir, confiantes de uma rápida decomposição a fim de novo sepultamento na mesma cova estar a caminho de necessário, haja em vista os graves achaques da avó mais que virgem maria, amiga sim dos homens e das mulheres de exemplares virtudes, que não beata de sacristias.

Não se decompôs o corpo como foi testemunhado e Maria de Jesus teve de descansar santamente noutra térrea sepultura.

Quem subiu ao céu foi Maria de Jesus, prometida a deus ou porque deus desejou e quer e pode e manda, sete anos depois do gago António, incorrupto como se disse e António criancinha desiluminada testemunhou. Não houve intermitências nos anos seguintes e a morte veio com a gadanha fazer mais colheitas na vasta prole dos antoninos, porque eles eram tantos, tantos quantos deus pedia, com suicídio, meningite, câncer e gastroenterites, até de caganeira se morria.

O céu começou a nevoentar-se, a ensombrecer-se, António, o neto, cuja gaguez lhe estava no sangue, deixou-se conduzir ao sítio do cão da beira mar para o salvar como se quisesse salvar a si mesmo e para melhor se conhecer e ainda obter karma positivo, um lugar cativo no reino dos cães.

Já tinha dono o cão ou fez do nomadismo novo modo de vida. Cansara-se de esperar: fora-se o raio do cão sem nome. E logo este canino, que bem podia ser a reencarnação de todos os caninos animais da infância; recordou as memórias do pai António filho de António, que não conseguia mais que atrair para o ninho do lar os desvalidos e vadios, todos os que encontrava e a quem de imediato batizava de cão sem nome, como fica provado, o ser cão sem nome era coisa de família, como a gaguez antoniana. Eram todos uns perros e mal-agradecidos, que por fim teimavam em ser autónomos e se sumiam por ânsias de liberdade ou porque as vergastadas da mãe os escorraçavam sem dó nem piedade sempre que inadvertidamente latiam.

Ora, um cão, ainda que pobre ou desvalido tem de poder falar. Piravam-se todos os sem nome a correr da mãe, do pai pouco, e dos filhos antoninos muito, destes por temer o afeiçoamento. E da cadela que os pariu, se preciso fosse. Fosse como fosse, fica claro que a revolução proletária dos infelizes começara no estado novo concomitante com as greves operárias reprimidas como que premonições do grito do povo: os cães unidos jamais serão vencidos, ligados a um slogan-apelo cheio de pertinências: cães de todos os países uni-vos.

A raça andava já a lutar pelas liberdades selvagens, pouco comprometida com as democráticas e desumanas existências. Livres e iguais, a lutar pela abolição das classes, pelo fim das raças e por um ambiente harmonioso de todos os animais, sem exclusões das pessoas de índole animal-humanizada.

Sacou do bloco de notas da gravidez do sol, da areia, das lembranças dos abandonados cães sem nome, sentou-se no cadeirão de madeira rija enegrecida, ripado e almofadado, recostou-se, descalçou as sandálias e estagnou as pernas, pôs enfim a rodar um cd no aparelho multimédia, em cuja capa leu tratar-se: primeiro, de um canto gregoriano monódico; segundo, representando um tal organum, de pérotin, dizem que uma pérola das luzes parisienses de duzentos, mais ou menos, «no qual os antigos cantos eram embelezados por linhas vocais adicionais», parte que teve dificuldade em entender; terceiro, enfim uma densidade de quatro motetos densa e poeticamente harmónicos de Machaut, o mestre francês do século catorze, fim de citação.

Então, António decidiu escrever, sem norte, conforme lhe saíram as palavras da alma.

Querida mãe, talvez não saibas quanto te amo. Não o suficiente para te procurar em todos os fins-de-semana, mas o bastante para todos os dias te recordar e manter uma feliz imagem de ti. Não quero conservar uma ideia fúnebre, és uma mulher sofrida, carregaste com o peso dos teus dez rebentos, todos eles homens e mulheres feitos, e esse parece ser o suporte da tua felicidade. Quero que me julgues igualmente feliz, mesmo que desconfies da minha alegria pronta a servir nas festas do nosso calendário ocidental. Fantasias, pensarás tu.

Sou um sobrevivente dos gagos, ou um continuador de ti guerreira, uma serva matriarca, desculpa o paradoxo, o que me conforta no interior do nosso amor, tu que estás no céu e tudo vez, mesmo que eu não acredite e queira acreditar. Uma doença de psiquiatria todos sabemos que demora a liquidar, outras contas, porém, tenho de saldar, por isso, querida mãe, decidi escrever o relato que se segue: numa linguagem não erudita para que possam todas as mães honestas entender, e porque não sou erudito.

E continuou, estás a entender-me, vá, faz um esforço, não estás assim tão senil como aparentas, nem a ausência de uma escolaridade superior faz de ti uma pessoa menos culta que os doutores. Até eu entrei na faculdade e tu nem querias acreditar, logo me perguntaste se passava receitas quando fosse letrado ou doutor e li-te nos olhinhos sôfregos uma leve desilusão quando te expliquei que ser licenciado, mestre e até doutor não outorgava a obrigação de passar receitas, nem a de ser mais culto. Que de resto, receitas até tu davas para as maleitas da família. Tu entendeste, tu sempre me entendeste, mãe, porém a restante família alargada e a vizinhança podiam desconfiar: havia que despachar receitas que a gente não é iletrada.

És uma mulher brava, daquelas que dá gosto trazer ao peito, beijar, abraçar. Mãe.

Hás de ter tempo bastante, a eternidade é enorme, para compreenderes a nossa solidão. A droga arruína as famílias, diz-se repetidamente na televisão; a sida é a maior epidemia do último quartel do século, houve-se da boca sábia de quem investiga a funesta doença e de quem tem a experiência dela, não entra aqui a execração ou anátema das vítimas; a prostituição é um mal social e tem relação com a crise social que atravessa todos os séculos de que há memória; a anorexia surge como uma doença daquelas e daqueles que querem uma cabeça culta e um corpo anacronicamente estereotipado e, dizem os psiquiatras, pode ser combatida e até vencida, pode instalar-se de vez, pode matar. Todas as explicações são poucas para tanta impotência, mãe.

Eu estou no combate, a nossa filha pode morrer. Tornou-se absurdo, é o espectro da morte que nos habita, eu não aguento mais, quantas vezes disse esta frase à Antonieta, quantas vezes a mesmíssima frase me foi devolvida. Não que receie os efeitos dela. Porque morrer em cada dia que passa é um acontecer estúpido, deplorável, insuportável com a ajuda incongruente e incompetente dos psiquiatras. Os avisos do doutor da margem sul, nesta matéria, foram vaticínios de trevas. A sentença, o juiz, o carrasco e o coveiro são dados e executados por todos nós. Sem remorso, que esta é uma palavra pequena.

 

Sabes mãe, a Antonieta dizia-me, quando tínhamos um falar normal, que nos amava muito e que a luta nossa era a dela luta. Um amor enternecedor saía-lhe das entranhas, sobressaía como exemplo polido e perfeito de menina educada na polis, bafejada pela moina de uma beleza moral dogmática, genuína e autêntica, que jorrava do e no monte olimpo.

Delfos, foi aqui que quase rezei sobre o umbigo do mundo, em prece de agradecimentos a apolo. Nenhum deus grego, porém, reúne todas as qualidades daquela beleza ideal. Todas as belezas reunidas, isso sim, em comunhão olímpica, dão sentido à vitória dos vencedores. Por isso não rezei frente ao parnaso. As pedras que repousam no chão, do mármore provável de paros, reúnem a perfeição escultórica e divina dos seus obreiros, concreta e imperecível, uma beleza inexprimível, imaculada e não platónica, repleta de vida e de amor e de grandeza em tudo semelhante à de Antonieta. Uma soberania feliz e linda subjaz nas pedras das históricas cidades da Hélade, descontando-se, é certo, a ignomínia da generalidade dos governantes que historicamente se serviram do poder e dele abusaram em nome dos deuses, da monarquia, da república, da democracia.

Da escravatura de todas as idades.

 

 

 

 

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