Entrevistas

Alice Vieira: “Quando escrevo só penso em mim”

Cativa os leitores há cerca de 40 anos. Escritora, jornalista, mãe e avó a tempo inteiro, confessa que só escreve em casa, num sexto andar, na capital, cheio de livros, memórias de muitas fotografias. O seu portátil nunca saiu de casa e, ao seu lado, continua a velha máquina de escrever, onde deu vida aos primeiros textos que escreveu. Entrevistar Alice Vieira também é aprender. É sorrir com vontade. Neste momento, está empenhada em escrever a biografia da Condessa de Ségur, a primeira mulher a viver dos seus direitos de autor, e que nada perdoava aos seus editores, porque a vida dela e dos netos dependia disso.
Agência de Informação Norte – Escrever é um ato de coragem?
Alice Vieira – Um ato de coragem é trabalhar, por necessidade, naquilo de que não se gosta. Eu sempre trabalhei no que quis.

Faz leitores há quantos anos?
De livros, há 40 anos. De jornais, há alguns mais. Ainda há quem, desse tempo, me chame pelo nome com que eu então assinava: Alice Vassalo Pereira.

Como é que se define como escritora?
Acho que os leitores é que saberão. Eu escrevo quase sempre sobre aquilo que me rodeia, procurando sempre algum sentido de humor, e sendo muito, mas muito exigente com a escrita. Sou do género de escrever 1 página e deitar fora 20 (risos).

Começou por escrever livros para crianças…
Para crianças não escrevi muito. Para mim, é o tipo de escrita de que não gosto tanto.

Entende ser o caminho mais difícil para um escritor?
Não sei se é mais fácil ou mais difícil – não é a minha praia. Eu escrevo para adolescentes e para aquele público que os anglo-saxões definem como “young adult”. Ultimamente, tenho escrito mais para adultos mas, até aí, as fronteiras, às vezes, são difíceis de estabelecer. A minha poesia sim, essa é, definitivamente, obra para adultos, e aí não transijo.

Então qual é segredo de tantos livros para os leitores mais pequenos?
Para adolescentes é diferente. E é uma das minhas grandes paixões. Não sei qual o segredo, claro. Mas penso que lhes falo de igual para igual, e de temas que também são os do mundo que os rodeia. Acho que se identificam muito com as minhas personagens.

Os miúdos são os leitores mais exigentes?
Todo o leitor tem de ser exigente. Adolescente ou adulto. E o autor ainda mais.

Mais de 75 livros publicados. Lembra-se da maioria dos títulos dos livros?
Lembro-me de todos. E já vou em mais de 80 (risos)

“A escrita requer muito trabalho, muita oficina, muita leitura”

Já escreveu vários Romances. Da última vez que falámos, disse-me que era muito egoísta quando os escrevia. Continua?
Sempre. Quando escrevo romance (ou outro género qualquer) só penso em mim e nunca no público que, em princípio, o irá ler. O livro tem de me agradar a mim -que sou extremamente exigente -se não, nada feito.

Quando olhamos para si ficamos com a sensação de que a Alice não parou no tempo…
Espero não ter parado (risos). Comecei a escrever livros em 1979 –e, hoje, os tempos são outros, e nós somos outros. E como nunca parei de escrever, esforço-me por acompanhar o tempo em que estou.

Acha que um escritor é aquele que escreve muito bem?
Para já, não sei exatamente o que é “escrever bem”. E desconfio sempre muito quando oiço dizer de alguém “tem muito jeito para a escrita”. Isso não chega. A escrita requer muito trabalho, muita oficina, muita leitura.

O novo acordo ortográfico é um problema ou uma atualização ortográfica?
É uma questão que não me aflige. Aflige-me, isso sim, que as pessoas falem e escrevam tão mal, que a utilização do verbo “haver” seja praticamente um mistério para a maioria das pessoas. Ainda não há muito, uma professora dizia-me: “vamos entrar que os alunos já hádem estar lá dentro…”) , assim como o uso na escrita de determinados tempos verbais: “comes-te” em vez de “comeste”, “morres-.te” em vez de “morreste”, e, por aí fora… E, quase sempre, são essas pessoas que mais refilam contra o novo acordo.

Dorme cerca de 3 a 4 horas e diz que não tem sono. Muda de pilhas muitas vezes ao dia?
Já aprendi a dormir um pouco mais, por ordem médica, mas sem tomar nenhum remédio.

Um computador e um café. Aliados perfeitos no seu dia-a-.dia?
Não passo sem eles, claro. E continuo a beber cerca de 20 cafés por dia (e não me tiram o sono (risos).

A Alice conseguiu juntar dois tempos: a máquina de escrever e o computador…
Por isso digo que sou uma privilegiada porque conheci o antes e o agora.

Existe quem afirme que ser escritora não é uma profissão. Concorda?
Nunca. A não ser para quem pense que a escrita é um passatempo. Fazer palavras cruzadas também é. A escrita tem de ser encarada como outra qualquer profissão. O mal é que, para muitos, a profissão principal é outra (professores, médicos, advogados, etc) e dessa outra é que eles vivem. Por isso, nem sequer se importam muito se as editoras não lhes pagam (às vezes, até pagam eles…). Por isso, o número de escritores inscritos na Sociedade Portuguesa de Autores é tão pequeno e, claro, com tão pouca força reivindicativa. Neste momento estou a escrever a biografia da Condessa de Ségur, a primeira mulher a viver dos seus direitos de autor, e que nada perdoava aos seus editores, porque a vida dela e dos netos dependia disso.

Mas diz isso com que sentido de viver dos seus livros?
Se é a minha profissão, é dela que eu vivo! Parece-me normal que assim seja.

Escreve na sua sala. Ali junto da janela. Cada canto deste espaço tem uma história…
As pessoas riem-se muito quando eu lhes digo que o meu computador é portátil, mas que nunca sai desta mesa. Sim, todas as histórias, todos os poemas saem daqui.

Está ali uma máquina antiga de escrever…
Uma Remington, mais velha que eu. Comecei muito cedo a escrever nela. E o meu primeiro romance, “Rosa, Minha Irmã Rosa”, ainda foi escrito nela.

O que é que o jornalismo lhe ensinou?
Tudo. A não escrever mais do que é necessário, a usar poucos adjetivos e ainda menos pontos de exclamação e reticências, a não me deixar levar por floreados. Estou sempre a ouvir o Manuel de Azevedo, um grande jornalista e meu chefe no “Diário de Lisboa”, a dizer: “um jornal que se preza não circula com palavras fora de circulação”.

Mas, segundo sei, queria ser jornalista porque ouvia dizer que eles nunca estavam em casa…
Isso era nos meus tempos de criança. Mas, sim, acho que foi o primeiro motivo que me levou a entrar para o jornalismo aos 18 anos.

O que mais lhe custou no jornalismo?
O jornalismo foi, é e há-de ser, a paixão da minha vida. Mas era muito difícil escrever com censura; assim como também foi difícil, de repente, a seguir ao 25 de Abril, escrever sem censura, de tal maneira estávamos – como diríamos hoje – formatados para a escrita.

Era Jornalista antes do 25 de Abril. Como vivia com a censura?
Era difícil. Mas havia uma grande cumplicidade com o leitor. Lembro-me de um dia em que a censura cortou toda a 1ª página do “DL” – e o jornal saiu com uma 1.ªpágina cheia de receitas de cozinha. Se fosse hoje, toda a gente imaginaria que o jornalista estava maluco. Nessa altura, todos os leitores entenderam que tinha sido corte da censura. Eram verdadeiros malabarismos de palavras e frases que se faziam.

Como vê o jornalismo atual?
Prefiro nem ver. (risos). Estou muito bem a escrever no “Jornal de Mafra” e no “Almonda” (o jornal de Torres Novas, a minha terra, e o primeiro onde comecei a escrever, ainda muito jovem, ainda Alice Vassalo Pereira.) e, mensalmente, na revista “Audácia”, para jovens.

Mas, hoje, muito jornalismo é feito na secretaria…
Vantagens do progresso. Toca-se numa tecla e temos toda a informação no nosso colo. Mas um jornal tem de ser muito mais que isso.

“Custa-me muito a morte dos que me rodeiam”

Foi estranho ler os seus primeiros artigos?
Escondi o jornal, para que lá em casa ninguém lesse…

Escreveu algum artigo sobre a cidade do Porto?
Escrevi, com certeza, mas não me lembro. Foram tantos anos. Lembro-me de muitas crónicas sobre o Porto, isso lembro.

Que ligação tem a esta cidade?
Muitos amigos, ainda hoje. E, quando eu era criança, e passava o verão com os meus tios nas termas de Caldelas, havia sempre um dia em que vínhamos ao Porto comprar prendas para a família toda. Lembro-me de passar horas na loja de tecidos do Sr. João Fernandes, que me deixava mexer em tudo, enquanto os meus tios escolhiam o que queriam.

Está também nas redes sociais. Enquanto escritora, as novas tecnologias são uma ameaça ou uma ajuda?
Uma grande ajuda, se forem bem utilizadas. É como tudo. Uma faca serve para cortar o pão e o pescoço do parceiro (risos).

Aprendeu a viver com a doença?
Claro. Quando nos dão 2 anos de vida -e já vamos em 30 -aprendemos a viver com tudo. Não acha? (risos).

Mas pensa muito na morte?
Custa-me muito a morte dos que me rodeiam. Por isso, este ano tem sido muito complicado. Mas na minha morte não penso. Há-de vir um dia, claro –mas, até lá, é preciso viver o melhor que pudermos. E de resto, há muito que o meu lema de vida é uma frase que eu um dia li numa igreja de Chicago, quando o meu filho e os meus netos lá viviam. Abria a janela do meu quarto e era logo aquilo que eu lia: “ Nunca ponhas um ponto final onde Deus pôs uma vírgula”. Enquanto houver vírgulas, cá vamos.

A vida é o quê, Alice?
Dizia S. Gregório que “toda a nossa vida é feita de recomeços”. Recomeçar, sempre.

Posso concluir que uma boa gargalhada é também a sua vida?
Às vezes, é o que me salva.

 

 

 

 

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