Espetáculos Nacionais

Festival Primavera Sound: Gambito de damas

Festival Primavera Sound arranca com muita chuva, mas casa cheia. Numa noite em que o cabeça de cartaz Kendrick Lamar não convenceu, dentro e fora de palco, foco nas mulheres e na afirmação do género, em jeito de xadrez sedutor e atrevido.

Mariana consulta a aplicação de meteorologia no telemóvel, várias vezes ao longo da noite, enquanto espera pela atuação do rapper californiano Kendrick Lamar, para tentar convencer os colegas de que, à hora prevista do concerto, “não vai chover”. Mas a chuva que teima em serpentear o céu do Parque da Cidade do Porto veio para ficar e é senhora e rainha na primeira noite do festival Primavera Sound, uma noite de casa cheia, apesar do mau tempo.

E é no feminino que se faz esta noite festivaleira, embora o  cabeça de cartaz seja aquele compositor norte-americano. Perante um Kendrick Lamar indiferente ao público, apático, nada comunicativo e a deixar longos espaços vazios de silêncio entre as músicas do alinhamento, protagonismo para elas: as mulheres e a chuva, que, ainda assim, não afasta milhares de pessoas que não arredam pé.

É o caso de Maria, presente pela primeira vez no Primavera Sound e que, com a voz já a ficar rouca, diz que se está a “divertir imenso” neste “relvado transformado em pântano”. Não é a única a galhofar. Por todo o recinto alagado, dezenas de jovens dançam, ao som da música, de braços no ar. Algumas sentem a chuva trespassar os impermeáveis e entranhar-se até aos ossos, como que se o dilúvio fosse uma ode, uma composição poética que emana boas energias. Outras estão praticamente despidas e apresentam-se perante a chuvada como se fossem para a praia, num radioso dia de sol. Há quem esteja apenas vestida com uma cueca fio dental e uma transparência por cima do corpo a mostrar tudo; há quem envergue calções tão curtos que as nádegas ficam todas de fora; reinam os crop tops nas indumentárias das raparigas; não faltam os micro-vestidos de licra justos à pele; e há também inúmeros rapazes em tronco nu, literalmente, a tomar banho de chuva, enquanto cantam e dançam à chuva.

“Saio daqui ensopada e amanhã vou estar de molho, mas hoje estou consoladinha!”

Ao atentar-se no outfit que estas pessoas exibem, percebem-se imediatamente três coisas. O público do Primavera Sound é (tal como o próprio festival) mais alternativo que outros públicos e parte dele integra uma cultura de tribos urbanas que não são fáceis de identificar. Por outro lado, a matriz de liberdade, de diversidade e de pluralidade do Primavera Sound reproduz-se também neste gambito de damas, nesta farra corporal, acompanhada de estroinar mental e até de alguma artimanha libertina, como a observada num grupo de duas jovens e um jovem suecos, em notório estratagema libidinoso, junto a uma casa de banho. Em terceiro, este é um evento intergeracional, que cruza idades dos 15 aos 70 anos.

Que o diga Alison Goldfrapp, a vocalista dos Goldfrapp (banda britânica de pop eletrónico, formada em 1999), que do alto das suas botas azuis e lantejoulas da mesma cor, se apresentou a solo neste Primavera Sound, com o álbum de estreia em nome próprio, “The Love Invention”, e com temas antigos dos Goldfrapp.

De outra geração, a jovem cantora e compositora britânica, de 23 anos, Holly Humberstone surpreendeu com um misto de canções dançáveis (a fazer lembrar a sua compatriota Griff) e com outras intimistas, inspiradas nos males de amor (num tom que trouxe à memória a voz de Jewel e de Britney Spears).

Nesta noite de damas, jogada certeira foi também a da banda londrina The Comet is Coming. A música eletrónica com jazz, funk e rock psicadélico misturados proporcionou momentos calorosamente dançáveis, como se a chuva fosse mero adereço do cenário.

Mariana volta a consultar a App e diz: “pelo menos hoje, as previsões do tempo acertaram e não foram como no xadrez, em que se fazem coisas para enganar o adversário e causar-lhe prejuízo”. E ri-se ela: “saio daqui ensopada e amanhã vou estar de molho, mas hoje estou consoladinha!”.

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