Destaque

Bombeiros já estão na viagem de regresso e trazem 102 refugiados para Portugal

A caravana da Liga dos Bombeiros Portugueses que a 10 de março rumou à Polónia para entregar ambulâncias e outros bens a entidades ucranianas já está em viagem de regresso desde segunda-feira à noite, acompanhando dois autocarros com 102 refugiados que irão viver em Portugal. Cerca de 50 dessas pessoas ficarão a residir no concelho de Mafra e as restantes distribuir-se-ão por localidades de Portimão até à Trofa.

– Texto e fotos da enviada especial Alexandra Couto –

Domingo descarregaram-se cinco ambulâncias e toneladas de alimentos, vestuário, artigos de higiene e materiais de primeiros-socorros. Ficaram à guarda da associação ucraniana SOS Army, que já os começou a distribuir por hospitais e instituições que prestam apoio aos desalojados pela invasão russa. Depois, na segunda-feira, entregou-se no laboratório da marca Neuca, em Pabianice, a carga de medicamentos e outras substâncias que a empresa Biopharma doou para ajudar a sua congénere na produção de fármacos que fazem falta às vítimas do conflito russo-ucraniano. No quartel de bombeiros de Rzeszow deixaram-se ainda algumas toneladas de equipamentos de proteção individual, que, horas depois, já tinha sido entregue a corporações ucranianas, ajudando a suprir a sua carência de material para combate a incêndios e catástrofes em contexto urbano.

A pessoa que vem coordenando a entrega e distribuição desses capacetes, fatos de proteção e outros materiais é Alina Kozlova, uma bombeira ucraniana destacada para recolher na Polónia os equipamentos necessários não apenas para a sua corporação, mas também para outras que estão a trabalhar na linha da frente contra os russos. Diz que ficará em território polaco enquanto os seus chefes acharem que ela é mais útil nesse país do que na Ucrânia e é precisamente o trabalho que lhe evita as lágrimas ao pensar que, para trás, deixou o marido, agora ao serviço do Exército, e o filho de cinco anos, deslocado com a avó materna para uma cidade mais segura. “Estão num sítio com menos riscos, mas continuo a não estar tranquila e a minha mãe insiste em não sair da Ucrânia. Só tem 55 anos, mas diz que não se ia adaptar a outro país e outra língua”, conta Alina.

Mudança que mãe e filha conseguiram fazer foi cortar relações com os familiares russos que só acreditam na versão de Putin sobre o conflito. “Eles insistem que a Rússia está a ajudar a Ucrânia, que os soldados deles estão a salvar-nos. Nós contamos-lhes a destruição que está a acontecer, o que vimos por nós mesmos, e eles não acreditam no que lhes dizemos”, realça. “No século XXI, parece impossível que a informação real não lhes chegue ou que seja assim manipulada, mas é o que está a acontecer e não vai melhorar. O Putin é louco. Vai querer avançar para a guerra nuclear” .

Depois do shopping de Przemysl, o gimnodesportivo de Cracóvia

Quando Alina interrompe a conversa para voltar ao trabalho e não ser consumida pelas lágrimas, a caravana dos bombeiros portugueses despede-se dos seus colegas polacos e reorganiza-se: os camiões partem para os arredores de Cracóvia, dada a impossibilidade de circularem dentro das localidades, e os carros ligeiros começam a última etapa da sua missão, que é acompanhar o Município de Mafra e a Paróquia da Ericeira e Carvoeira no transporte para Portugal de refugiados ucranianos.

Todos esses cidadãos foram previamente sinalizados como tendo familiares ou contactos de apoio em solo luso e já há alguns dias que uma equipa de técnicos de Mafra andava por Cracóvia a recolhê-los em diferentes pontos da cidade e a reuni-los no pavilhão gimnodesportivo da Escola João Paulo II. Foi aí que ficaram acomodados nas vésperas da viagem para Portugal, pelo que o piso desportivo onde habitualmente se viam apenas as marcações coloridas dos campos de jogos se apresentava esta segunda-feira quase totalmente coberto por colchões.

O ambiente era contido e fazia-se sobretudo de adultos silenciosos, mas, com o recinto bem aquecido, crianças descalças tentavam marcar cestos nas tabelas de basket, uma menina chorava porque a bola vermelha não lhe agradava tanto quanto a amarela, três adolescentes jogavam cartas, dois miúdos desenhavam em folhas pousadas no chão…

Do grupo que se distribuía por todo o gimnodesportivo, muito poucos falavam Inglês e raros foram os que aceitaram ser fotografados ou contar a história de como a guerra lhes mudou a vida. Mas uma mãe jovem, cujo bebé mordiscava uma girafa plástica, pronunciou o suficiente para dizer que estava contente por ir para “Portugalia” e, antes que o tradutor contratado pela Câmara de Mafra pudesse ajudar na conversa, já ela seguia com o bebé e a filha de 14 anos para o autocarro que os esperava. Todos os bens o que os três transportavam cabiam num único trolley de tamanho médio.

O dobro dos refugiados previstos

Desde o início desta missão humanitária, o objetivo da Liga dos Bombeiros Portugueses e da Câmara e Paróquia de Mafra era trazer para Portugal 50 cidadãos ucranianos. Mas uma avaria no segundo dia da viagem permitiu duplicar esse número: por um lado, como o autocarro que integrava a caravana teve que ficar retido em França para ser reparado, houve que alugar outro veículo que o substituísse e foi esse que seguiu caminho até à Polónia; por outro lado, como o primeiro autocarro voltaria a ficar operacional dias mais tarde, os seus 50 lugares estariam disponíveis para transportar mais gente e havia que rentabilizar essa capacidade. Foi assim que a organização da missão decidiu alugar um terceiro bus apenas para a viagem entre Cracóvia e França: esse veículo recolheu os refugiados na Polónia, levou-os para França e, uma vez realizado o transbordo dos seus passageiros para o autocarro antes avariado, o serviço dava-se por concluído.

Feitas as contas, a iniciativa conjunta – e gerida ao minuto, ao longo dos 6.800 quilómetros de viagem, nos dois sentidos – permitiu recolher 102 cidadãos da Ucrânia – assim como quatro animais de estimação. Do grupo, metade são crianças e jovens até aos 15 anos, sendo que, entre os adultos, as mulheres têm idades entre os 18 e os 81, e os quatro únicos homens estão em idade sénior. “Também levamos senhoras grávidas e idosas com patologias, sendo que uma das senhoras do grupo é médica”, revela João Pereira, comandante dos Bombeiros Voluntários de Mafra e um dos coordenadores da missão.

O destino desses passageiros é agora geograficamente mais diversificado do que se pensava no início da missão. “A maioria destas pessoas vai para o concelho de Mafra, onde devem chegar esta quarta-feira ao fim do dia, mas, no segundo grupo, levamos gente para localidades de todo o país”, diz o mesmo responsável, referindo como exemplos a Trofa, Portimão, Torres Vedras, Alcobaça, Figueira da Fiz, Mangualde e Penamacor – municípios onde a chegada está prevista para sexta-feira.

Contando com uma viagem de regresso sem percalços, o padre João Tiago Fonseca, que se envolveu no projeto em resposta ao apelo de ucranianos que vivem na sua paróquia, realça o “sentido de companheirismo notável” entre os refugiados, que, antes desconhecidos entre si, agora partilham a experiência de deixar o seu país e parte das suas famílias. “Têm compaixão pelos outros, não se olham como rivais a competir pelo mesmo lugar no autocarro…”, explica. “Estes deram o passo, confiaram em nós, deixaram-se ajudar. Espero que outros possam fazer o mesmo”.

Bastou um documentário sobre Portugal

Uma das pessoas que deu esse passo de confiança foi Anita Bergman, uma ucraniana de 26 anos que viaja sozinha com o grupo até Portugal, rumo à casa de uma compatriota emigrada que se disponibilizou para a acolher durante algumas semanas. A jovem vivia em Karkhiev com os pais e o irmão de 13 anos, e, um mês antes da invasão russa, já a mãe lhe dizia que a guerra estava a chegar e era preciso fugir. “Ela mandou-me um documentário sobre Portugal e disse que era um país bom, com clima agradável, gente simpática e muitas pessoas que falavam Inglês”, recorda. “Disse-me que nesse país haveria muitas oportunidades para eu arranjar emprego e que as escolas falariam Inglês para o meu irmão de 13 anos poder estudar”.

Todos se prepararam para rumar a Portugal, juntos, mas, face ao esquecimento de documentos só detetado na fronteira próxima de Lviv, Anita foi a única que prosseguiu viagem. Trouxe consigo, presas entre o telemóvel e a respetiva capa de proteção, uma foto da melhor amiga e outra da avó, uma engenheira premiada que descreve como “heroína nacional” devido a uma carreira em que se incluem aeroportos, estradas e infraestruturas decisivas de algumas cidades ucranianas. “Ela não quer sair de Karkhiev”, revela. “Diz que a capitã do navio não o pode abandonar”.

Talvez pelos genes da avó, o aspeto cansado de Anita não ofusca o seu ar expedito. Mostra-se lúcida e tenta focar-se nos aspetos positivos. Mas não faz planos irrealistas, como os que equacionam que possa voltar a casa num qualquer futuro próximo. “Eu sigo a política e tenho muito medo de que não haja outra opção senão fugir, por causa de alguns políticos loucos. Mesmo que a nação seja forte e vença a guerra, Putin nunca aceitará isso e poderá fazer coisas ainda mais loucas do que as que já faz agora. O melhor seria que tudo acabasse dentro de um mês ou dois, mas mesmo assim será preciso muito dinheiro e muitas mãos para recuperar dos estragos. Só na minha cidade há 600 casas completamente destruídas e muita gente que não tem mais onde ficar”

ALGUMAS FOTOS SOBRE AS ULTIMAS ETAPAS DA MISSÃO:


A entrega de equipamentos de proteção no quartel de bombeiros polaco


Malas prontas na escola de Cracóvia que acolheu os refugiados antes da viagem para Portugal


O padre João Tiago Fonseca com uma menina ucraniana

 


Anita Bergman


Os dois autocarros momentos antes da saída de Cracóvia, com os bombeiros que acompanham o grupo de ucranianos. Foto: DR


A lista de passageiros foi verificada para entrega ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras na chegada a Portugal


O pavilhão da escola de Cracóvia após a saída dos refugiados rumo a Portugal

Tags
Show More

Related Articles

One Comment

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Close