Espetáculos Nacionais
Primavera Sound: a música como elemento catalisador da (a)normalidade
Numa noite em que as mulheres fizeram as honras da casa no Festival Primavera Sound Porto, havia expetativas sobre a atuação da experiente PJ Harvey, mas o concerto pode ter desiludido. A falta de comunicação da cantora com o público e problemas na guitarra da artista sobressaíram sobre tudo o resto. Enérgica foi a atuação dos Militarie Gun, que homenagearam a “fucked up people”.
7 de junho 2024
O palco como montanha-russa emocional é a metáfora do que explica a escritora Miriam Toews no livro “Noite de luta”: “Se deitares cá para fora o que tens aí dentro, serás salva. Se não deitares cá para fora, o que tens dentro de ti destruir-te-á”. Ora, nesta primeira noite da edição 2024 do Festival Primavera Sound, foi percetível a grandeza da música enquanto elemento catalisador da (a)normalidade da vida, que é preciso gritar cá para fora. Da vida que, por vezes, é preciso deitar fora.
Com um cartaz recheado de vozes femininas, a atração maior terá sido a cantora britânica PJ Harvey. Com letras de músicas enigmáticas, semblante carregado, nunca sorridente, porte teatral e performance cénica eclesial, a cantora de 54 aos apresentou-se de branco celestial. De vestido branco e uma túnica branca por cima, com ramos pretos de árvores impressos nessa túnica, PJ Harvey encarnou uma espécie de deusa em processo de purificação. E apresentou um alinhamento que foi um misto de cerimonial-triste com o arrojo de guitarradas de rockeira punk, a mostrar que as suas diferentes fases musicais refletem isso mesmo: diferentes fases da vida e diferentes posturas perante a vida.
“I´m sorry”
De resto, esta mulher que foi um ícone rock dos anos 90 normaliza a (a)normalidade da vida, neste caso da vida artística, como ninguém. Fez questão de expor a falta de empatia com o público. Porque não dialogou com ele. Não lhe sorriu. Não o cumprimentou com um único “boa noite” ou “olá”, nem lhe agradeceu com o básico e espontâneo “thank you”, em todo o concerto. Os dois únicos momentos em que falou com a plateia foram forçados pelos problemas com a sua guitarra. Tinham decorrido 22 minutos desde o início do concerto, quando PJ Harvey se dirigiu à assistência para dizer apenas: “I´m so sorry. I have problems with my guitar. Thank you so much for being patient and for being here”. Uma hora e quatro minutos depois do começo do espetáculo, a artista voltou a agradecer a paciência do público, perante os problemas com a sua guitarra, e limitou-se a apresentar os elementos da banda que a acompanharam.
Três músicas depois, terminou o concerto, com uma vénia individual e com a vénia de grupo sem, mais uma vez, dirigir uma única palavra à plateia que, não obstante a falta de comunicação, a saudou com várias ovações, durante o espetáculo. Não fossem os fãs de PJ tão devotos, tão reverenciais e tão leais, ela não teria merecido o recinto apinhado de gente que teve, nem as ovações que recebeu esta noite, oito anos depois de ter atuado em Portugal (neste mesmo Festival Primavera Sound e também no Coliseu de Lisboa).
“Fucked up people”
Não sendo anormal, ainda que possa causar estranheza, esse registo passivo-contemplativo de PJ Harvey, a maior demonstração de que a música pode ser um elemento estímulo ou acelerador da (a)normalidade esteve na atuação dos californianos Militarie Gun, uma banda de rock alternativo e punk rock. O vocalista, Ian Shelton, subiu ao palco com um olho negro e inchado, o que gerou vários comentários entre a assistência, que questionava se ele teria andado à porrada, se teria caído, se teria tido algum acidente. Sobre o peito, o cantor tinha vestido um colete preto à prova de bala, com as iniciais da banda, MG, como que a desafiar a vida para todos os embates.
Sempre em interação com o público, ora questionando-o, ora fazendo-o refletir, o cantor foi intercalando os sucessos da banda com confissões, recebendo em retorno aplausos ruidosos e gente aos saltos. Durante o espetáculo, Ian Shelton admitiu que já cometeu “muitos erros” e que “os Militarie Gun não são convencionais, não são mainstream”, porque cresceram na cena punk hardcore e porque querem que a sua música seja confusa para pessoas de mente fechada. Liberto de qualquer amarra conceptual, estética ou de qualquer expetativa que sobre ele pudesse recair, o vocalista não teve pudores em assumir a (a)normalidade da vida, ao dizer: “I´m a fucked up person and you may like fucked up music, because you´re fucked up people”. O público aplaudiu, aplaudiu, aplaudiu, consentindo a verdade de tal afirmação.