Entrevistas

Beatriz Gosta: “Se eu conquisto o pessoal do Porto eu conquisto o país inteiro”

Beatriz Gosta é uma personagem de ficção, que chega agora ao palco em formato de Stand Up com o espetáculo “Quem Acredita Vai”. Dois teatros já com datas extras.

A mulher de cabelo curto e uma bela dose de loucura que nos conquistou a contar desbocada, aos domingos à noite, as suas peripécias, sentada no sofá da sala, deitada na cama ou à mesa da cozinha, com um copo de vinho na mão, saltou do Youtube para a televisão e para os palcos. E o melhor é que continuou sem papas na língua. Beatriz Gosta é o alter-ego de Marta Bateira que, aos 36 anos, promete que “Quem Acredita Vai”. Vai subir a palcos do Porto e Lisboa. Na verdade, a antiga designer de moda nunca teve a pretensão de ser humorista, mas a personagem que criou acabou apropriada por um público que lhe agradeceu a ousadia com espetáculos esgotados. Mas ela põe já os pontos nos is. Diz que não é humorista, antes “uma contadora de histórias”. Histórias que são mais do que as longas noites de folia no Porto, e que acabam a tropeçar num caminho que fala liberdade, emancipação, feminismo. Que “representa a voz de muita gente”. Não é dada à religião, mas “fé” não lhe falta. Marta Bateira abriu-nos as portas, sem deixar o jeito e o dicionário de Beatriz Gosta de lado.

 

Agência de Informação Norte – Beatriz Gosta é uma personagem de ficção, que chega agora ao palco em formato de Stand Up com o espetáculo “Quem Acredita Vai”. Dois teatros já com datas extras. Está assustada?
Beatriz Gosta – Acabou de esgotar a terceira data de Lisboa e já esgotou uma no Porto e ainda tem outra em aberto. Ainda faltam dois meses ou menos. Estou assustada, ainda nem festejei, porque não dá. Porque estou a acusar pânico (risos). O povo está mesmo a acreditar, eu acredito, e quem acredita vai. Mas o povo está a acreditar muito e está-me a dar “bué love”. Estou muito agradecida e tenho que corresponder a toda esta expectativa do povo. Mas estou feliz. Estou muito feliz!

Qual é na verdade a grande mensagem deste espetáculo?
A grande mensagem deste espetáculo é quem acredita vai. Eu sou uma pessoa que tem muita insegurança, não acredito muito em mim, no que diz respeito ao trabalho. Ia dizendo sempre “não” quando me convidavam para fazer stand-up comedy ou outros projetos assim arrojados, que me faziam sair da minha zona de conforto. Resolvi em 2019 dizer que sim, ponto final. Já não tenho muito a perder, caminhando para os 37 anos, os sonhos estão aí para serem realizados e resolvi acreditar em mim, dizer a mim própria “tu és capaz”. Por isso, a mensagem principal deste espetáculo é tu acreditares em ti e seguires os teus sonhos. Daí o “Quem acredita vai”.

Como vão ser estes espetáculos? Vão ter, por exemplo, convidados?
Não, não vai ter convidados. Sou eu a solo, sozinha da silva a dar tudo. Não vou levantar o véu, não vou “chibar” aqui nada. Quero que seja mesmo surpresa. A única coisa que posso dizer é que adaptei o formato dos vídeos do Youtube, entre outro material, ao palco, ao stand-up comedy. Mas posso dizer que continuo a ser uma contadora de histórias, essa é a minha forma de comunicar. É assim que o povo me acha graça e está habituado a ver-me. Sou uma boa contadora de histórias, e estou-me achando (risos).

“Eu falo do jeito que eu falo”

Acha que a realização dos espetáculos no Porto vão ser mais difíceis dos que os de Lisboa por estar a jogar em casa?
Há uma coisa curiosa: Lisboa acha-me graça automaticamente quando eu abro a boca e solto aquele sotaque nortenho bem danado para a brincadeira. O povo acha logo que isso tem muita graça, fora as expressões muito minhas. O Porto, por outro lado, já não estranha o sotaque nortenho, nem acha que sou exótica por isso. Mas tenho uma forma de falar muito própria, tenho a minha gíria, o meu calão e isso é geral. O povo já identifica e acha piada. O povo do Porto é inicialmente desconfiado, mas depois abraça-te de um jeito… com um calor fora de série. É diferente do resto do país. Se conquisto o pessoal do Porto, conquisto o país inteiro. Tenho um pouco isso. São públicos diferentes, é certo, mas acho que consigo. Em Lisboa só tenho que passar legenda em algumas coisas que eles não percebem (risos).

Mas a linguagem vai ser a mesma nas duas cidades ou vão ser adaptados?
Não. Eu falo do jeito que eu falo. Eu “saco” do jeito que eu “saco”. A única coisa que posso adaptar não tem a ver com as cidades. Tem muito mais a ver com o espaço: se estou num festival, num auditório ou num coliseu. E o tempo, não é?! Se tenho meia hora, um quarto de hora ou uma hora e meia. É mais isso que me preocupa. O tipo de público que tenho à frente, claro. Mas não tem a ver com a cidade. Tem mais a ver com o formato. Como disse, o Porto não precisa de legendas no rodapé, já em Lisboa se calhar não percebem tanto a minha gíria e o meu calão.

O público do Porto aceita com mais facilidade os palavrões dos que os de Lisboa?
O pessoal teima, teima, teima em dizer que o pessoal do Porto diz palavrões como se fosse uma vírgula. Até posso concordar de certa forma, mas não é cada tiro cada melro. Numa frase não digo dez palavrões. Mas sim, o pessoal não estranha tanto no Porto como estranha noutras cidades. O que acontece é que eu, por acaso, não sou tanto de dizer “caralhadas”. Sou até mais de uma “xuxinha matinal”, “uma piscininha na pombinha”, “um tchuca tchuca”. Sou muito mais disso do que dizer aquelas palavras feias que se usa quando se fala de sexo. Não sou muito de usar aqueles palavrões feios que até fere de ouvir.

Quem é a Beatriz Gosta e o que é que ela representa na verdade?
Beatriz Gosta é uma personagem fictícia. O meu nome é Marta Bateira. O que ela representa? Ela representa liberdade, ela representa emancipação, ela representa feminismo, ela representa a voz de muita gente. Representa espontaneidade. Um tipo de mulher que não está assim dentro daquelas caixinhas que o pessoal fez questão de criar. É isso! Daí o público LGBTI e as mulheres se identificarem tanto. Porque, de certa forma, sou a voz desse povo todo que até agora não se sentia muito representado.

“Beatriz Gosta aconteceu na minha vida sem querer”

Mas o que é que esta personagem já lhe ensinou enquanto mulher?
Enquanto mulher ela deu-me força, essencialmente. Eu já era uma mulher feminista, já como rapper, M7, tinha uma mensagem bastante feminista. Abordava assuntos que mexiam comigo e que achava importante falar. Beatriz Gosta é igual de certa forma. Beatriz Gosta através da brincadeira, de contar uma história, de peripécias, ela acaba por abordar situações e por lançar temas para cima da mesa muito importantes. Acaba por tocar na ferida. Mas de forma leve, sem ser pesada, sem grandes revoltas, sem grandes berros. E dá um murro na mesa quando tem que dar. O pessoal acaba por se rir mas também por “chupar”. Tipo “#chupa”, chupem invejosos.

Sei que nunca teve a pretensão de ser humorista e muito menos fazer carreira disto. Afinal como chega até aqui?
Beatriz Gosta aconteceu na minha vida sem querer. Eu era designer de moda, não estava com energia, nem com confiança para fazer um álbum de rap e sem querer a Capicua teve uma ideia: “E se tu contasses histórias, e se tu fosses para a rua extrair sumo, e se tu tivesses um canal no Youtube?”. Reunimos as pessoas certas e elas acreditaram, mesmo sem dinheiro, sem sabermos no que é que isto ia dar. Nem sequer imaginávamos tampouco. E sem nenhuma ambição fizemos isto por diversão, por desafio, por tudo. A coisa aconteceu e as pessoas acharam-me graça, e acham-me graça talvez por ser uma pessoa com algum carisma, por dizer o que muita gente pensa mas não tem coragem de dizer. E digo-o de uma forma muito própria, que ninguém consegue levar a mal. Acho que o meu humor está ali na linha entre “estou a rir-me contigo, não de ti”. Até porque rio-me muito de mim própria e gozo comigo própria também.

Qual é na verdade o sucesso da Beatriz Gosta?
Não faço ideia. Às vezes pensas que é isto ou aquilo, e não é. Não sabes, não tens como saber. Mas penso que é a espontaneidade, a tal coisa de conseguir dizer de forma divertida coisas que toda a gente pensa e sente mas não tem coragem de dizer. De ser gráfica enquanto conto uma história, enquanto falo, e de conseguir retratar situações pelas quais toda a gente passou ou conhece alguém que passou. Abordo temas como sexo, vida boémia e por aí fora de forma leve, sem ser vulgar, sem ser ordinária, mas ao mesmo tempo vou ao fundo da questão. Mostro a mulher de 2019, o que ela pensa, o que sente, as vontades que tem, a mulher que pode ser várias coisas ao mesmo tempo.

Mas diz que sempre foi tímida…
Eu era tímida até aos 12. Aliás, até aos 16, mas foi gradual. Fui-me transformando na mulher que sou hoje, pelas coisas que fui vivendo, pelas coisas que fui aprendendo, pelos desafios da vida, pela vida que me obrigou a ser diferente, pelas coisas que queria mudar. A verdade é que ainda sou tímida em muitas coisas. Apenas arranjei ferramentas para contornar a coisa.

Mas a  Marta Bateira acha piada à Beatriz?
Às vezes sim, às vezes não. A Marta acha piada à Beatriz quando estou livre, em freestyle total. No improviso, na loucura, num extravasar que acaba a “sacar” uns “mambos” que me deixam a “grizar”, sabes, a rir muito. Porque também há uma interação. Há pessoas que estão a interagir comigo e eu estou ali a “sacar”, a extrair sumo. Ou então quando estou a contar uma história e acabo por me perder a descrever detalhes que têm muita graça. Muitas vezes, quando me perco, o caminho acaba por ter mais graça do que propriamente o final. São os detalhes. Basta dizer que a cortina era de organza, dos chineses… Às vezes, isso tem mais graça do que o fim da história.

Têm muito em comum?
Têm muito em comum! A Marta Bateira tem Beatriz Gosta em si, como tem outras coisas mais. Outros heterónimos, como M7. Toda a gente tem vários heterónimos. A pessoa que vai a uma entrevista de emprego não é a pessoa que está na cavaqueira com os amigos, nem é a pessoa que vai conhecer os sogros, nem é a pessoa que está com a família. Nós somos várias pessoas numa só. Eu tenho Beatriz em mim, mas a Marta é diferente. A Marta não está sempre com a roda levantada, nem sempre a bater no vermelho de felicidade e de excitação. Tem dias maus, tem dias em que está triste, tem dias em que está calma, tem dias em que está calada e não está sempre “pow pow pow”, rainha.

Esta personagem transformou a vida por completo da  designer de moda?
Completamente. Nunca imaginei este percurso. Nunca imaginei este sucesso e esta visibilidade. Nunca imaginei trabalhar na Antena3 com uma rubrica, nunca imaginei trabalhar no “5 para a meia-noite”, nunca imaginei fazer parte do “Esquadrão do Amor” no Canal Q, nunca imaginei fazer stand-up comedy, nunca imaginei ter um canal de youtube e ter sketches, nunca imaginei nada disto. Tinha uma vida em que acordava às 6 da manhã para ir trabalhar e de repente, agora, tenho uma liberdade gigante e acordo feliz com que o que faço. É muito gratificante e quero agradecer a toda a gente porque isto é muito louco.

Quem a conhece diz que é uma jovem com uma muita “lata, diz o que vai na cabeça e que leva tudo à frente”. Já sentiu algum receio ao entrevistar ou de fazer perguntas ousadas?
Claramente que sim. Quando tu vais entrevistar o presidente da Câmara de Lisboa, ou chegas perto do Presidente da República, até te benzes quatro vezes e respiras para um saco. Tenho que ir devagarinho para ver o que consigo “sacar”. É muito importante essa sensibilidade, tu chegares e testares um bocadinho para veres como és recebido do outro lado. Vais a medo e quando sentes que do outro lado te permitem avançar mais um pouquinho, tu vais e vais e vais até conseguires “sacar”. eu vou sempre com muito respeito e com uma sensibilidade apurada e com uma perspicácia bacana para não invadir o metro quadrado do outro. Porque isso é muito importante. Posso ter uma lata do caraças, mas a minha intenção não é desrespeitar. Gosto de ser hardcore, gosto de arrojar, mas não de entrar no metro quadrado do outro e ser desrespeitosa. Não é a minha praia, de todo.

Acha que faltava em Portugal alguém como a Beatriz para pegar em assuntos muitas vezes considerados tabus?
Sim! Se eu não fosse mulher e fosse um homem a falar como eu falo, a contar as histórias que eu conto, não teria o mesmo impacto. O sucesso que tive foi exatamente por isso, porque ninguém abordava as coisas assim, falando de sexo, falando de homossexualidade, da vida boémia, do que a mulher pensa e sente. Pelo menos desta forma. Se calhar falavam de forma mais formal, mais aborrecida. Mas eu dou um pontapé na porta, “pow”, sem ter muito medo. Claro que me questionei: será que devo fazer este projeto de Youtube? Mas achei que valia a pena a missão. Quanto mais não seja para fazer rir o povo.

“Não tenho uma religião mas tenho bastante fé”

Acha que ainda vivemos num Portugal onde a irreverência e o diferente são ainda olhados de lado?
Acho que sim. Acho que está melhor mas ainda falta um longo caminho. Na televisão ainda continua a haver um tipo de mulher, ainda não há diversidade suficiente. Ainda não há espaço para mulheres diferentes, como há para homens. Ainda há aquela modelo alta, magra, linda, maravilhosa, com uma vida perfeita, que não passa para fora as coisas más da vida normais, as fraquezas, as figuras tristes que a gente faz. A coisa natural. E acho que as pessoas devem falar de mim nas costas, devem julgar-me e pensar: “Ela também está a pedir para pensarem isso dela”. Mas só fica mesmo quem interessa, quem é importante e quem vale a pena. É como em tudo na vida. Perdes coisas que, se calhar, não eram assim tão importantes e outras ficam, as que valem mesmo a pena. As pessoas ainda têm muito medo do desconhecido, do novo, do diferente. Mas se permitirem chegar perto, acabam por mudar de ideias. Só que como têm medo, muitas preferem ficar longe e julgar sem conhecer. Muita gente, ao longo destes quatro anos, percebeu chegando perto e acabando por me conhecer. Inicialmente, não gostavam de mim e depois perceberam que não era nenhum bicho-de-sete-cabeças e que afinal sou uma gaja fixe e que não sou assim tão “ganda maluca”. Sou uma gaja normal, não quero chocar por chocar, não quero ser gratuita. E quero ser respeitada por isso.

Mas chegou a sentir isso?
Senti e sinto isso. Antes abalava-me mais, porque era mais nova e porque, às vezes, estás numa fase da vida em que estás mais fragilizada. Mas ao longo destes anos, desde que apareceu a Beatriz Gosta nas nossas vidas, até tenho lidado muito bem. Não tenho muitos haters e os que tive, soube lidar bastante bem. Sei que as pessoas devem falar, mas tenho-me rodeado de pessoas amigas de longa data e que estão comigo e não me estranham. Sou igual ao quesempre fui. Só tenho que lidar com uma coisa diferente. Mas sim, nas relações há dificuldades volta e meia, há julgamentos. Mas com 36 anos a fazer 37, a gente já se conhece e já consegue lidar bem com isso.

Da rádio para a televisão e com muito sucesso no Youtube e agora na televisão. Sente-se uma mulher realizada?
Sinto-me uma mulher realizada e agradeço muito a Deus, à vida, ao que for. Não tenho religião, mas tenho bastante fé. Sou muito agradecida e sei que houve trabalho, mas também houve muita sorte e muito amor da parte das pessoas. Tenho uma liberdade gigante no “5 para a meia-noite”, fiz coisas que nunca imaginei fazer. Sou mesmo muito feliz! Fiz rádio, uma experiência nova, Youtube, dou palestras, tertúlias com várias pessoas, troco ideias com muita gente, conheço pessoas diferentes a toda a hora. Estou realizada. Ainda tenho um sonho por realizar, que me apoquenta, que é o meu álbum de rap. Mas agora esta coisa nova do stand-up está a fazer-me sentir viva. Vai ser um desafio subir a um palco, ter montes de gente à minha frente e fazer o povo rir. É difícil. Estou com medo. “Porém contudo” é um desafio e a gente está aqui para se sentir vivo.

*A AIN agradece o apoio do Teatro Sá da Bandeira.

Tags
Show More

Related Articles

3 Comments

  1. Gosto desta miúda, gosto dos termos que usa. ENtrevista muito bem conseguida. Muitos parabéns a todos.
    VIcente
    Almeirin

  2. Tinha que ser do Porto, ou melhor: de Gaia. A sua forma tão própria de dizer e abordar os assuntos faz com que por vezes se resolvam os assuntos. Não deixa em muitos casos de ser uma professora para levantar determinadas questões para discussão. Todas nós já passamos por uma das suas historias. De uma forma ou de outra…todos temos um pouco de Beatriz… “Eu hoje também não tou boa” risos

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Close