Entrevistas
“A Mais breve História do Líbano” de Catarina Maldonado Vasconcelos
"A Mais breve História do Líbano" é uma obra da jornalista Catarina Maldonado Vasconcelos, onde se aborda a invasão israelita de outubro de 2024, que não é novidade para o povo do Líbano, que vê o seu território disputado desde há milénios.
18 de junho 2025

Agência de Informação Norte – Ao desfolhar este livro, deparamo-nos com um olhar profundo sobre um País que vive e viveu cenários drásticos, mas que em si mesmo nunca conseguiu ter a sua identidade e consagração. Catarina o que a motivou para escrever “A mais breve História do Líbano”?
Catarina Maldonado Vasconcelos – Estamos na era geopolítica das superpotências e homens fortes, mas o mundo convoca-nos a pensar sobre os danos colaterais. E o Líbano tem sido sempre encarado como um dano colateral num xadrez altamente explosivo. Tem sido também a peça do puzzle que falta para contar a História do Médio Oriente. Quem quer compreender o mundo tem de compreender a História do Médio Oriente, e quem quer compreender a História do Médio Oriente tem de compreender a História do Líbano. Compreendi, ao longo do meu estudo, que queria contar uma História maior, e explicar como ela se relaciona com um presente, que é, de certa forma, o passado que não passou.
Há anos que ouvimos falar do Líbano, pelas suas sucessivas crises. O Líbano tem sido esquecido, mesmo que ouçamos falar dele muitas e muitas vezes. É um país de elevadíssima riqueza cultural, histórica e até cultural, e encontra-se numa região que emanou os fundamentos da nossa civilização mediterrânica. Mas também é um lugar marcado por sucessivos conflitos e uma identidade fragmentada. Viveu entre disputas imperiais e a servir de palco a batalhas que não eram as suas. Sempre viveu à sombra de interesses maiores, das potências coloniais ao xadrez regional do Médio Oriente. França moldou o seu nascimento, a Síria manipulou-lhe o destino durante décadas, Israel invadiu-o, o Irão instrumentalizou-o através do Hezbollah, a Arábia Saudita comprou-lhe elites políticas, sobretudo dirigentes do ramo sunita, e as monarquias do Golfo ora financiam ora desinvestir em Beirute, consoante os ventos geopolíticos. Encontrar paz tem sido uma tarefa inglória, e sem paz a fragmentação toma conta.
Mas o Líbano é também um laboratório de resistência, uma espécie de lar impossível, para milhares e milhares de refugiados em fuga ao longo de décadas: palestinianos, sírios, arménios… O Líbano é um dos espelhos mais autênticos das contradições do Médio Oriente. Faz-nos questionar o que é um Estado e que forças invisíveis mantêm os Estados unidos, ou, contrariamente, o fazem ruir. As fragilidades das nossas construções identitárias e geopolíticas, sobretudo ocidentais, mas não só, são no Líbano expostas.
Catarina, o que é que os ocidentais não sabem do Líbano, em termos culturais, sociais e políticos. Podemos levantar o véu… para aguçar a vontade dos leitores de descobrirem muito mais nesta sua nova obra?
Talvez nos esqueçamos mais vezes do que as desejáveis de que o Líbano está aqui tão perto, a menos de 250 quilómetros do Chipre, e, portanto, da Europa. Fez parte do ultramar francês, e foi em tempos a verdadeira ponte entre o mundo árabe e o Ocidente. Os jornais mostram-nos um país cravejado de guerras civis, explosões, tensões nas fronteiras, instabilidade política e institucional. Mas a resiliência dos libaneses não pode ser subestimada — do ‘boom’ económico dos anos 1950 e 1960 à reinvenção pós-guerra civil, nos anos 1990, passando pela Revolução dos Cedros e pelos protestos de 2019 em todo o país —; o Líbano não se rende à sua própria tragédia. Existe até uma palavra do coloquialismo libanês, Imtamsahna, que significa “desenvolver uma pele tão dura quanto a de um crocodilo”. Em tempos, subsistiu a ideia do Líbano como uma “Suíça do Médio Oriente”. O slogan surgiu na era dourada de Beirute, nos anos 1950 e 1960, quando a capital libanesa era um polo financeiro, turístico e cultural. O que o tornou então um Estado a que muitos chamam “falhado”? O cosmopolitismo à beira do abismo: o facto de a neutralidade geopolítica se ter tornado impossível, a cristalização da fragmentação sectária (o Líbano tem 18 facções religiosas reconhecidas, e o Pacto Nacional Sectário estabeleceu a divisão de poderes entre cristãos maronitas, sunitas, muçulmanos xiitas e drusos, em menor escala, a partir dos dados do último censo realizado no país, em 1932, o que na prática perpetua divisões), e uma economia baseada no setor bancário e na confiança dos investidores externos, sem um setor produtivo robusto. Quando a guerra e a instabilidade se instalam, os investidores são repelidos. O Líbano sempre viveu no fio da navalha, e o que restava da mítica “Suíça do Médio Oriente” e da “Paris do Médio Oriente” (Beirute) desmoronou-se. É a esta contradição vibrante, mas também à vitalidade surpreendente da sociedade libanesa, que abro o livro, na minha obra. O Líbano é um universo inteiro de paradoxos — com equilíbrios sectários, alianças voláteis, uma federação informal de clientelas religiosas —, a morada dos grandes conflitos da Humanidade, e uma sociedade com uma diáspora que não desiste desta ideia de país. O Líbano dir-nos-á por onde irá o Médio Oriente.
O Líbano foi dominado por diferentes potências ao longo da história. O país conquistou a independência da França em 1943, a 13 de novembro de 1936, assinando o tratado de Amizade e aliança. Esta assinatura foi tudo menos consensual. Como avalia o papel do presidente Émelie Edde, que tinha sido já primeiro-ministro do Líbano até 1929?
As decisões políticas de França, de Inglaterra, e, de uma forma geral, do Ocidente, neste período, conduziram o país a uma guerra civil, mais tarde, que se arrastou por 15 sangrentos anos: por um lado, a declaração Balfour, em que o ministro dos Negócios Estrangeiros britânico Arthur James Balfour se refere à intenção do Governo britânico de facilitar o estabelecimento do Lar Nacional Judaico na Palestina, caso a Inglaterra conseguisse derrotar o Império Otomano; por outro, a influência francesa no nascimento do Estado do Líbano, separado da Síria, e nos fundamentos da sua Constituição.
O cristão maronita Émile Edde tornou-se controverso no país, porque, apesar da sua habilidade política, nunca se desvinculou da defesa da francofilia (que, de resto, acompanhou muitos dos maronitas libaneses no poder). Por um lado, tentou assegurar a autonomia libanesa, e não ceder às pressões pan-árabes (por exemplo, para constituir uma Grande Síria), mas a sua ligação francófona debilitou a sua imagem, sobretudo junto dos muçulmanos xiitas, que não queriam uma independência vigiada e tutelada por Paris. Por isso, foi visto como elitista, ou como um líder que tinha uma visão de país desequilibrada — essa mesma visão de país que desencadearia a guerra civil que começou há precisamente 50 anos no Líbano. A figura de Edde é emblemática dos conflitos sectários de raiz na sociedade libanesa. Mas as dúvidas sobre como construir uma nação soberana e plural, governando apesar dos muros sectários, sem os ignorar, perduraram ao longo das décadas. O tratado de 1936 mantém pontos ambíguos, porque não abdicava do essencial do protetorado francês e consolidava um modelo político que sem dúvida beneficiava a elite maronita, em detrimento das comunidades muçulmanas. Passos como estes deverão ser-nos familiares, porque assistimos o que aconteceu em algumas das antigas colónias portuguesas e as “dores de crescimento” por que passaram.
Durante os 12 anos do pontificado do Papa Francisco uma das suas maiores preocupações foram as guerras, uma das quais no Líbano. Este tipo de denúncia traz mais consciencialização ao problema vivido no Líbano?
É preciso falar sobre o Líbano, e a voz do Papa Francisco tem impacto moral e simbólico. Ao mencionar o Líbano, o Papa Francisco lembrou-nos a importância de quem no mundo é pequeno e frágil, mas também a mensagem de coexistência entre religiões — este Papa foi particularmente sensível à compreensão da verdade das crenças do outro — e culturas. O Líbano surge, nas palavras do memorável Papa, como um manifesto de igualdade e diversidade. Além de se ter reunido com o antigo primeiro-ministro do Líbano, Najib Mikati, foi muito eloquente ao expressar como o país tem sido apanhado no meio do conflito entre Israel e a Palestina. Os apelos do Papa ajudaram a romper com a indiferença internacional, fazendo-nos confrontar o nosso espelho e a nossa própria incúria e cinismo face ao mundo.
Acima de tudo, a mensagem de Francisco é de esperança, e essa alinha-se perfeitamente com a de um país que aprendeu a sobreviver ao caos e a dançar entre ruínas. Francisco pareceu sempre compadecido de admiração, mas também insurgente contra as injustiças que se perpetuam no tempo, deixando populações entregues ao ciclo da pobreza. Depois da guerra, será necessária alguma comoção que leve à ação, para que se possa reconstruir o país, tarefa na qual a comunidade internacional deverá ter parte ativa. Também é importante ressalvar que o Vaticano tem uma ligação histórica profunda com o Líbano desde que os maronitas e a Santa Sé se reconciliaram, no século XV.
No seu livro há uma descrição arrepiante que nos remete a 2020, vou mencionar esta no meio de muitas outras que acontecem infelizmente no Médio Oriente a cada dia. “a 4 de agosto de 2020, ao final do dia, dá-se em Beirute uma das maiores explosões não atómicas da História…. foi ouvida a mais de 240 km de distância. Foi ainda percecionada pelo serviço geológico dos Estados Unidos como um evento sísmico de magnitude 3,3.” Não deveriam estes relatos unir o Mundo para a tentativa de sanar as feridas profundas dos libaneses e de todos que procuram no Líbano um pedaço de chão?
O que aconteceu em Beirute a 4 de agosto de 2020 foi uma tragédia material, mas também um colapso moral, porque mostrou-nos como a negligência e a corrupção podem ferir o povo. Podemos refletir sobre como muitas vezes não é um inimigo externo, mas o falhanço do Estado que nos condena. O poder e a impunidade conjugam-se perfeitamente. E a devastação de vários bairros de Beirute é simbólica, para compreendermos a relação da sociedade libanesa com o Hezbollah. Trata-se de uma relação abusiva: a mesma mão que se estende e cuida é a mesma que empurra e afunda, e isto acontece quando as estruturas do Estado se demitem de cuidar. Se uma explosão como estas pode ser ouvida a mais de 240 quilómetros, deveria mesmo ecoar nas nossas consciências. Nenhum destes males é tão distante que deva ser ignorado ou esquecido. É preciso reunir solidariedade e compromissos concretos. Os esforços da sociedade civil, que se desdobrou em ajudas nos hospitais, nos bairros atingidos, na reconstrução e no fornecimento de alimentos e bens de primeira necessidade às vítimas, deveria inspirar-nos. O Líbano precisa de mais do que palavras, precisa da nossa ética, institucional e política, quando a interna lhes falta. Num mundo em que as crises não se desfazem, pelo contrário, somam-se efeitos — da pandemia à guerra na Ucrânia, passando pela crise energética e alimentar, e ao conflito no Médio Oriente e aos ataques ao transporte marítimo, taxas alfandegárias e novas tensões geopolíticas —, não podemos habituar-nos à tragédia. A violência e a injustiça não podem ser uma normalidade inevitável do Médio Oriente, sob prejuízo de virmos a ser penosamente surpreendidos, novamente, no futuro. Saber mais sobre o mundo que desconhecemos permite-nos andar menos anestesiados, e mais despertos na nossa dignidade humana.
O território libanês é banhado pelo Mar Mediterrâneo. O Líbano faz fronteira com Síria e Israel. A população do Líbano é de quase 7 milhões de habitantes. O território libanês é pouco populoso, mas muito povoado. Por que fica pelo caminho a promessa de tornar este País uma espécie de “Suíça do Médio Oriente”?
A promessa é adiada pela não emergência de uma identidade e projeto comuns. Por um lampejo de tempo, pareceu possível, nos anos 1950 e 1960, quando o Líbano era um centro financeiro vibrante, com liberdade de imprensa e uma vida cultural cosmopolita, que atraía artistas de Hollywood e intelectuais de todo o mundo. O turismo prosperava naquele território pequeno mas rico em paisagens, das montanhas onde nevava às praias mediterrânicas. O problema nunca foi a falta de potencial, mas de fatores de estabilidade. A interferência externa ditou um destino de lógica cumulativa de conflito. Em 1975, quando começou a guerra civil, já era palpável o ressentimento institucional, a desigualdade socioeconómica — meia dúzia de famílias concentravam mais de metade do capital em depósitos bancários —, e a obsessão identitária, que foi o túmulo da coesão nacional. No Líbano de 1975, a paz era uma cortina. O Estado parecia inteiro, mas estava corroído por dentro. E, quando a guerra chegou ao fim, após 15 anos, os acordos de Taif cristalizaram as mesmas elites, as mesmas famílias e os mesmos senhores da guerra, no poder. Seguiu-se uma amnistia geral, sem intervenção dos tribunais nem encerramento judicial para os que perderam os seus familiares ou os tiveram para sempre desaparecidos. Os generais trocaram as fardas pelos fatos de políticos, e o Líbano não fez a paz; apenas suspendeu a guerra. Fez-se um acordo entre culpados, que queriam manter o poder. Hoje, as escolas públicas do Líbano não ensinam isto, e não existe uma política estatal formalizada para celebrar o aniversário da guerra civil. Cada comunidade preserva a sua própria narrativa do conflito. Ou seja, o Líbano fez a sua paz de silêncio e betão, e as divisões que conduziram o país àquele caos nunca foram curadas, permanecem, como um barril de pólvora. Dessa guerra, surgiu também o Hezbollah, que é a continuação do conflito por outros meios, e que se impõe como uma força mais robusta do que o próprio Exército nacional. Essa fragilidade do Exército e do Estado tornou o Líbano ainda mais vulnerável a agendas externas.
Sendo a economia do Líbano frágil e concentrada nas atividades de comércio e serviços, turismo, indústria e agricultura, quem são os libaneses e o que nunca se disse sobre eles?
O Líbano não está condenado ao fracasso perpétuo. O mito morreu, mas o país pode ainda reinventar-se, com o apoio da comunidade internacional e da sua diáspora, e a riqueza da sua localização geográfica. Os libaneses são sobreviventes. Para os que vivem longe do seu país, o Líbano é um misto de emoções: a comida dos pais, a força de viver contra tudo e contra todos, a inveja dos países vizinhos, os parentes espalhados pela Europa e Estados Unidos, o amor à vida, o gosto pela convivência, as portas abertas das casas, a luta pelo futuro dos filhos. Isto porque os libaneses são herdeiros de uma cultura milenar, que vai desde as influências helenísticas às do pan-arabismo. Ali nasceu o alfabeto, pela mão dos fenícios, civilização marítima. A força dos libaneses para reconstruir o seu país é quase inexplicável. Dali, muitos saíram para o resto do mundo e construíram negócios, universidades, redes culturais, sem esquecer a sua terra. Entre a escassez e a instabilidade, ainda existe um Líbano de criatividade, pulsão artística e “leite e mel”, como cantava Fairuz. Para já, existe um Líbano possível, mas o Estado que tem falhado cronicamente conta ainda com as famílias e os intelectuais. Os libaneses são um povo que tem rejeitado ser vítima do seu destino e marioneta de Teerão, Riade ou Paris. Devemos olhar para eles sem paternalismos. Há muito conhecimento e Humanidade a absorver do Levante.
Andreia Gonçalves
Foto: DR