Entrevistas

“O humor é a única arte que tem o dom de fazer cócegas na inteligência”

Considerado o pai do humor em Portugal, Herman José está a celebrar 50 anos de carreira e vai apresentar um espetáculo comemorativo no Super Bock Arena, no Porto, dia 19 de outubro, com orquestra, numa "espécie de brinquedo de menino mimado". O humorista acredita que o legado que deixa vai perdurar e sente-se maravilhado pelas condecorações que tem recebido em vida. Defende que o humor deve ter "os limites do bom senso" e admite como "interessante" se, quando morrer, derem o seu nome a alguma "rua gira".

Agência de Informação Norte – Retrospetivando os seus cinquenta anos de carreira que se assinalam nesta altura, quais lhe parecem terem sido os três momentos mais altos do seu percurso?
Herman José – É muito difícil, em termos absolutos, falar nos momentos altos, mas, se tivesse de escolher ou de fazer um filme sobre a minha vida e escolher três momentos verdadeiramente emocionantes, começava pelo ano de 1977, porque foi um ano de viragem para mim. Tenho um disco de ouro pelo êxito «Saca-rolhas», que me abriu porta aos espetáculos de província e permitiu que eu começasse a ganhar bastante dinheiro, de tal forma que, nesse ano, vou a Macau fazer três espetáculos e trago de lá dinheiro para comportar o meu primeiro apartamento. Veja como esse ano foi importante. Depois, saltaria para os anos 80, que me trouxeram o Tony Silva, o “Passeio dos Alegres” e, principalmente, “O Tal Canal”, que fizeram de mim uma figura de primeira divisão, respeitada por toda a gente e eu senti um encantamento absoluto. Por fim e por mais estranho que pareça, escolho o momento atual, em que assinalo 50 anos de carreira, é fantástico. Abrimos dois grandes concertos, no Porto e em Lisboa, e as vendas estão a ser maravilhosas. E, em novembro do ano passado, o Presidente da República atribuiu-me o grau de Grande-Oficial da Ordem do Infante Dom Henrique, a Câmara Municipal de Lisboa atribuiu-me a sua condecoração mais alta e, recentemente, a Sociedade Portuguesa de Autores brindou-me com o prémio «Vida e Obra», que só poucas personalidades o receberam, como Mário Soares, António Lobo Antunes, Álvaro Siza Vieira, Carlos Avilez ou Manuel Alegre.

Que escola e legado deixa a marca Herman José no humor nacional?
Alguém escrevia, no outro dia, que eu devo ser dos criadores de humor que mais horas de produção tem em televisão no mundo, não só em Portugal, porque eu nunca parei de trabalhar. São, na verdade, quase 50 anos de material. É inevitável que qualquer criador ligado ao humor acabe, mais tarde ou mais cedo, por tropeçar em mim e ser influenciado por qualquer coisa que eu tenha feito. Por esta razão, entendo que o meu legado irá perdurar, inevitavelmente, enquanto o material que tenho gravado perdurar.

Sente que esta nova geração de humoristas bebe ou bebeu inspiração no Herman José?
Há uns anos, eu diria que muito. Mas entendo que existem duas fases. Há 30 anos, eu era a fonte principal de inspiração para a maior parte de quem estava no humor. Depois veio a fase em que eu fico mais desaparecido e começam as novas gerações a serem muito formatadas por aquilo que vem do estrangeiro. Ultimamente, tem acontecido uma coisa muito gira com o advento da Internet e do Tik Tok e dos youtubers e o meu trabalho voltou a estar de tal forma visível que voltei a ser a principal força de influência para muitos jovens humoristas, que, depois, têm a generosidade de entrar em contacto comigo e de me dizerem coisas fantásticas. Jovens com 19 20 anos que, para mim, nasceram ontem, o que é muito estimulante para mim.

“É maravilhoso ser distinguido com saúde e em plena atividade”

Que importância têm, nesta altura, para si, as condecorações de que falava no início desta entrevista?
A maior importância é uma razão muito simples. É maravilhoso ser distinguido com saúde e em plena atividade. Porque distinguir pessoas que estão a cair da tripeça ou doentes ou que já não estão na plenitude das suas condições artísticas, isso, a mim, não me comove. E a maior parte das vezes é isso que acontece. E até há uma coisa muito perversa que é, quando o artista está doente, é condecorado pouco tempo antes de morrer. No meu caso, este privilégio de ter estas homenagens em plena atividade é absolutamente mágico.

De que forma lhe parece que a liberdade no humor evoluiu nos últimos 50 anos?
A liberdade evoluiu em todos os sentidos. Porque eu ainda vivi e senti, profissionalmente, o que era o Pedro Osório, que nos dirigia, mandar as poesias para a censura, e chegou a enviar 50, e só foram aprovadas três. Viver debaixo de um regime de censura, só vivendo é que se percebe. Este ganhar das liberdades tem sido notável em Portugal. Apesar de tudo, temos tido um fantástico ambiente para fazer humor. Há dias, estava a ver o Ricardo Araújo Pereira a brincar com o Presidente da República e lembrei-me que, há precisamente 40 anos, eu fiz uma coisa parecida com o Presidente do Sporting e a RTP foi condenada em tribunal a pagar cerca de meio milhão de euros, para indemnizar aquela ofensa enorme que tinha sido ter-se brincado com a imagem de uma pessoa na televisão. E isto prova aquilo que se evoluiu em 40 anos

O que significa que isto aconteceu já depois do 25 de Abril…
Exatamente. Foi em 1983. Abril tinha acontecido há sete anos. E, mesmo assim, o sistema judicial ainda considerava ofensa brincar com a imagem de uma pessoa. De maneira que essa conquista é muito grande, já que é muito fácil dizer que está tudo muito mal e que não se pode dizer nada. Isso é mentira. Pode-se dizer muito e quase tudo.

E os públicos têm mudado a sua forma de encarar uma piada?
Há uma coisa muito interessante na natureza: é que o público vai morrendo. Todos os Velhos do Restelo que eu conheci no arranque da minha carreira está tudo morto (risos). Os velhos atuais eram os novos há 40 anos, que não são tão maus como eram os maus naquela altura. E estou convencido que, daqui a 40 anos, quando os velhos de hoje, que são uns chatos, morrerem, o ambiente vai ficar um bocado mais interessante.

O humor deve ter algum limite?
Claro que deve. O humor deve ter os limites do bom senso de quem o pratica. E essa gestão só os inteligentes é que sabem fazer. É perfeitamente possível numa plateia de pessoas saudáveis contar uma piada divertida sobre cadeira de rodas. Se estiver alguém de cadeira de rodas a assistir, manda o bom senso que não se conte essa história e este é um pequeno exemplo que se aplica a tudo.

Qual é o maior poder do humor?
O humor é a única arte que tem o dom de fazer cócegas na inteligência.

Quem são os protagonistas mais apetecíveis para fazer humor? O Zé povinho, os políticos, determinadas classes profissionais? Quem?
O mais apetecível é sempre aquele que tem mais visibilidade. Os espaços estão lá para serem preenchidos. Quem os preenche naquele momento é o visado. Já foi o Soares, já foi o Cavaco, agora o Marcelo e será também o Montenegro. Em pequenos, também imitávamos os professores e só o fazíamos em relação aos que nos davam aulas na altura, porque os outros já ninguém se lembrava deles.

“O primeiro grande espetáculo da minha vida com o Nicolau Breyner foi feito no então Palácio de Cristal”

Celebrar 50 anos no Super Bock Arena, no dia 19 de outubro,  vai ter, certamente, um sabor especial…
Muito especial. O primeiro grande espetáculo da minha vida com o Nicolau Breyner foi feito no então Palácio de Cristal, agora designado Super Bock Arena e, ainda hoje, recebo mensagens de pessoas que estiveram nesse espetáculo. Estavam cinco mil pessoas e isso aconteceu no auge da personagem, porque não havia grandes coisas. Na altura, estávamos em 1975, tudo o que havia era político e a enchente foi de tal maneira que tiveram de chamar a polícia de choque para nos tirar do pavilhão. Foi uma experiência inesquecível e foi nessa altura e nesse momento que percebi que, eventualmente, tinha escolhido a profissão certa. Curiosamente, depois, tive uma passagem pelo deserto, até voltar a esse ano com uma relativa invisibilidade, porque ambas as personagens perderam a força, o que também me deu uma certa modéstia e a sensação que estas vitórias têm de ser alimentadas e não é um estatuto que se ganhe para sempre. Não é como nas Forças Armadas, que a pessoa fica general e, mesmo que não vá combater, mantém-se general (risos). Aqui, temos que estar sempre em cima do acontecimento. Voltar, em 2024, a este espaço, em condições totalmente diferentes e com um espetáculo muito especial, porque será feito muito mais para mim do que para o público. Ou seja, vai ser uma espécie de brinquedo de menino mimado.

Com orquestra, certo?
Com orquestra com vinte elementos, um display de imagem extraordinário. Além de uma prenda, será mais um caprichoso que um espetáculo.

Como gostava de ser recordado na história do humor em Portugal?
É para mim totalmente indiferente. Eu não acredito em nada. Nem em Deus, nem na Astrologia. Desde que a pessoa deixa de existir fisicamente, é indiferente para mim. Se, um dia, derem o meu nome a uma rua gira, não fico triste, porque até acho interessante. Mas como não vou estar cá para assistir… Agora giro é que a atribuição do nome a essa rua aconteça enquanto as pessoas estão vivas. Mas a lei portuguesa parece que não apoia essa prática.

Foto: Herman José

 

 

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One Comment

  1. Falar do humor é falar obrigatoriamente do Herman José a todos os níveis. Tiro o meu chapéu aos seus 50 anos de carreira, ao saber brincar na hora certa. Os humoristas devem- lhe muito. Nós portugueses também.

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