Cultura

Pintor Jorge Curval quer criar uma factory de artes e uma Fundação

Artista plástico com quatro décadas de carreira, aos 65 anos de vida, o nortenho Jorge Curval quer internacionalização. Ambiciona também ter uma Fundação com o seu nome e está a criar uma factory dedicada às artes. Experimentalista assumido, ironiza ao dizer que foi o maior “ladrão” das ideias de outros artistas e orgulha-se de já ter produzido cerca de quarenta mil trabalhos de pintura e escultura, muitos deles marcados pela volumetria, pela densidade e pelas frases que nos fazem pensar e questionar. Esboçamos o perfil de um provocador, um rebelde e enfant terrible, mas cujo retrato também tem laivos de pensador e de apaixonado.

Autorretrata-se com uma tela castanha apenas com um cérebro dourado no meio. Noutro autorretrato, em frente a este quadro, uma outra tela afirma-se pelo tamanho real do protagonista, bem vestido, de charuto na boca e com a frase escrita “Sometimes I think, sometimes I don´t”. Eis-nos confrontados com o pensamento como motor da criação e como pilar desta casa-atelier do pintor Jorge Curval. A habitação, com uma área de mil e duzentos metros quadrados, situada num terreno de vinte hectares, na freguesia da Junqueira, em Vila do Conde, tem uma sala, com mais de duzentos metros quadrados e um pé direito de seis metros, que funciona como a estrutura central de quem eleva o pensamento e de quem usa o pensamento e o conhecimento adquirido como ferramentas de trabalho.

Jorge Curval é intransigente na defesa da ideia de que “um artista tem de ter conhecimento” e que “a arte só evolui com conhecimento e com transmissão desse conhecimento”. Sentado numa cadeira de pele desta sala-atelier, afirma-se como “um artista a cem por cento”, não apenas porque se dedica a tempo inteiro e em exclusivo à pintura e à escultura, de há quarenta anos a esta parte, mas também porque “para se ser um artista completo, não se pode ter só um jeitinho ou ser uma personagem de jeito, tem de se ser um investigador, um estudioso, um erudito, tem de se ter olhar e pensamento crítico sobre o mundo”. Interessa-lhe “perceber o que está associado a cada referência artística, o sentido, o porquê e o contexto civilizacional de cada referência artística”, como uma Mona Lisa, um Guernica ou uma Capela Sistina, perceber o mundo e as pessoas em geral, para poder “evoluir como ser humano e como artista”.

Ocupa, por isso, muitas horas dos seus dias e das suas noites, a “ler, investigar e estudar autores, sensibilidades, estéticas, correntes de pensamento, artistas e movimentos artísticos”. É capaz de passar “dias ou meses sem produzir peças de arte”, apenas para ler e conhecer o pensamento de autores que vão desde o poeta português Fernando Pessoa ao romancista austríaco Rainer Maria Rilke, a pintores, intelectuais, físicos, químicos e figuras históricas que o “ajudem a subir um patamar” na sua própria obra e no seu pensamento de artista. O conhecimento e o lirismo que absorve dessas leituras reflete-se no tipo de obras que Jorge Curval produz e nas frases e pensamentos que escreve em tantos dos seus trabalhos, até porque “as palavras tanto matam como salvam”, como se lê numa das suas criações.

A respiração pausada e o tom moderado com que fala destoam do perfil “curioso, insaciado, irrequieto, insatisfeito, rebelde e provocador” que Curval admite ter.  Self-made man, que aprendeu por si, apesar de ter estudado Belas Artes, no Porto, sem ter acabado o curso, assume-se como “um experimentalista” que procura “explorar novos conceitos, novas representações da arte e do mundo”.  Diz que a sua curiosidade o leva a não esgotar-se “numa única coisa, numa única estética, num único cunho”. E dá como exemplos tanto poder trabalhar “numa tela, como num suporte duma esponja, como numa resina acrílica”. Trabalha com “todos os materiais, desde cimento, até cola, terra e lixo”. E, tal como Caravaggio fazia as suas próprias tintas, Jorge Curval faz os seus próprios materiais, misturando, por exemplo, “terra com tinta, terra com cola, cola com gesso e aguadas de lixo e cola, que libertam um cheirete terrível”, adicionando a esses materiais ramos, troncos, flores e até luzes led. O resultado final é “uma obra tátil, uma obra para ser vista e tocada, inspirada na natureza e nas pessoas”.

“Crio um determinado estado dentro de mim, para depois o materializar numa obra”

Curval acredita que, no futuro, será “um dos artistas que mais trabalho vai dar aos historiadores”, devido ao seu “experimentalismo e irrequietude”. Dá como exemplos peças que fez em resina, nas quais colocou “um coração de boi, um gafanhoto, um peixe, uvas ou uma garrafa de vinho”. Não tem dúvidas de que “daqui a quinhentos anos, se os historiadores investigarem estes trabalhos, vão ficar surpreendidos” não apenas com a excentricidade dos objetos incorporados na resina mas, sobretudo, com esta forma de “preservar o ADN das coisas, já que a resina não tem oxigénio e garante essa preservação” e com esta “forma de perpetuar ideias e trabalho na arte”.

Neste experimentalismo sem limites, Jorge Curval diz que bebe “influências nos artistas minimalistas e nos conceptualistas, nos artistas do passado e nos contemporâneos”. Revê-se no perfil dos jovens artistas visuais que, em 1988, começaram a expor em Londres, que ficaram conhecidos como Young British Artists (YBAs), também desingados Brit ou Britart, e nos quais se incluíam Damien Hirst, Marc Quinn, Tracey Emin e Sarah Lucas.  Mas quem observa os trabalhos de Curval identifica igualmente incursões pela Pop-Art, pelo Dadaísmo e pelo Surrealismo, para criar uma marca pessoal. Apesar de gostar de enfatizar que ele próprio é a sua própria marca e o seu próprio estilo, descreve-se como “uma mistura de algo que já se fez, acrescentando-lhe um novo valor” e “criando todas as liberdades, todas as possibilidades” nas suas peças, porque, insiste na ideia, “a arte é mais pensamento do que jeito ou maneirismo”. Nessa aceção, metaforiza ao dizer que foi “o maior ladrão como artista, copiei-os a todos, inspirei-me neles todos, influenciei-me por ele todos, tal como acontece com todos os artistas que roubam sempre, apropriam-se sempre de alguma coisa dos outros”.

Sem pudores, sem falsos moralismos, sem entraves, Curval defende com convicção, que “não há nenhum limite para a arte e para os artistas”. Porque, a partir do momento em que encara “a arte como uma espécie de milagre, uma aparição, que surge de um momento para o outro”, questiona-se: “como posso ter ou impor um limite, se ainda não encontrei o resultado da peça que estou a criar, se estou à espera que aconteça algo, enquanto trabalho nessa peça”? Compara, por isso, o processo de criação artística de determinadas obras a “um combate que travamos connosco mesmos, até obtermos um resultado”.

Praticante de artes marciais, de Tai Chi e de Chi Kung, Curval afirma que, quando está perante desafios produtivos de maior responsabilidade, encomendas específicas ou muito grandes e timings apertados, prepara-se para esse combate criativo através da respiração que exercita naquelas práticas. “Crio um determinado estado dentro de mim, para depois o materializar numa obra” e “uso a respiração para criar energias e ter uma epifania criativa ou para aguentar o ritmo”. Lembra como esses exercícios que estimulam e promovem uma melhor circulação de energia no corpo o ajudaram a “pintar, numa tarde, 180 aguarelas para um hotel” e a “trabalhar numa peça, até à exaustão, durante 48 horas seguidas, até obter o resultado que queria”. E garante que não se droga e não se alcooliza para criar porque, como desenvolve “um trabalho muito orgânico, muito decorrente do pensamento”, tem de “estar limpo e com o pensamento limpo, para produzir”.

Se na prática do Tai Chi e das artes marciais Jorge Curval encontra a energia para criar e encontra “referências de super-heróis, de justiceiros e de códigos de honra” com que se identifica, é também aí que vai buscar energia para se despojar e para balancear “a dose de loucura e de coragem que é necessário introduzir no pensamento para criar”. Garante que é capaz de “destruir dez horas de trabalho, sujando a tela toda de branco, depois de ter passado dez horas a pintá-la”. Justifica a atitude dizendo: “Devemos despojar-nos. Tal como não precisamos de tanta coisa que temos, também não devemos ficar reféns do que criamos. É preciso rebeldia e ousadia, quando sentimos que o nosso trabalho não está bom”. E recorda o dia em que uma pessoa o “chateou tanto, porque queria comprar uma tela minha, eu não achava que aquilo estava bem, rasguei o trabalho com um sabre e a pessoa comprou na mesma a tela rasgada”. Dá também como exemplo outros dias em que já está “exausto de trabalhar, não está a sair nada como pretendo e queimo os quadros ou atiro uma lata de tinta aos quadros, desfazendo-me daquilo que já tinha pintado, porque não estou a gostar do que estou a fazer”. Justifica a atitude dizendo que “o trabalho pressupõe exigência e, se faço um rascunho, um desenho ou uma tela que não está bem, rasgo, queimo ou desfaço tudo, para fazer tudo de novo”. E acrescenta que da mesma forma que “o desafio e a responsabilidade podem existir, também podemos ser livres nesse desafio e nessa responsabilidade”. No fundo, é a mesma liberdade e a mesma adrenalina desafiante que o faz andar de mota, dentro de casa, nas festas que dá para os amigos ou quando está sozinho e entediado, por não conseguir criar ou não gostar do que está a produzir.

A rebeldia valeu-lhe, desde muito jovem, a alcunha de “enfant terrible”, de “o artista” e de “play boy”, como já era conhecido no meio artístico do Porto, aos 20 anos. Em adolescente, foi expulso do Liceu Dom Manuel II, na cidade invicta, e do Liceu de Matosinhos, porque “vivia uma luta de pensamentos”. Recorda que, numa das vezes em que foi expulso, o pai castigou-o e pô-lo a “viver na quinta com os caseiros, durante dois meses, a apanhar batatas e a trabalhar na terra”. Desse castigo reteve a “aprendizagem da sobrevivência” que, tempos depois, lhe deu tarimba para sobreviver a um outro castigo. Quando o pai o pôs a trabalhar na fábrica de artigos decorativos que possuía, Curval só se aguentou a trabalhar lá durante oito dias e acabou por fugir para Espanha. “Dormia nos campos, nas estações de transportes, nas salas de espera dos hospitais, fazendo de conta que estava à espera de alguém, para não ficar na rua. Ia aos supermercados, abria os pacotes de bolachas e comia lá dentro, para matar a fome. Passei fome e dormi ao relento nessas aventuras”. Mas mantinha o sangue frio. O mesmo sangue frio com que somou aventuras juvenis pela Europa, quando “viajava para alguns países, para a apanha da maçã, do tomate e das vindimas”, e que culminaram em “seis passaportes de repatriação”. Foi repatriado da Suíça, de França e de Itália porque “quando já não tinha dinheiro, ia à polícia dizer que me tinham roubado a carteira, o dinheiro e os documentos, com o papel da polícia ia à embaixada e pedia ajuda, para me mandarem para casa e eles repatriavam-me”. Admite que “não conseguia receber ordens, pelo que não aguentava mais do que uma semana a trabalhar” e que isso tem a ver com o seu “lado rebelde e insubordinado”. Características que exacerbou, quando estava na tropa, ao “inventar um problema de visão” porque “não queria fazer a tropa”. Durante três meses, “dizia aos colegas e superiores hierárquicos que não via ou que via mal” e manteve essa mentira até terem querido submetê-lo a uma cirurgia. Confrontado com uma operação de que não precisava, decidiu “livrar-se da mentira” e, através de alguns conhecimentos, foi dado como inapto, livrando-se da tropa.

“Vendo assinaturas. O mundo é um negócio”

Ainda hoje, Jorge Curval mantém traços dessa rebeldia e excentricidade que faz questão de não esconder. No antebraço direito, tem tatuado o NIB da sua conta bancária, o mesmo número está pintado num dos pilares da sua casa e, junto a uma estátua de Buda com uma estátua de Santo António ao lado, exibe um cartaz onde se lê: “Vendo assinaturas. O mundo é um negócio”. Questionado sobre o sentido dessa frase, explica que “tudo é um negócio, exceto os nossos filhos” e defende que “uma peça de arte não vale dez mil euros ou cem mil euros, vale os anos de trabalho e de carreira do artista, vale a assinatura do artista”.

Frustra-o, no entanto, “não haver mercado em Portugal para a dimensão de alguns artistas e para tantos outros sobreviverem”. Tal como o frustra “não haver mercado para poder produzir mais peças noutros materiais, como o ferro”. Assume que “gostava de criar mais esculturas em ferro”, mas “se não há encomendas, se não há orçamento e se o artista está condicionado a um determinado território onde está inserido”, é um investimento sem retorno produzir mais peças.

Ainda assim, e porque é um artista a tempo inteiro, que pinta desde os 5 anos, embora só tivesse aprofundado capacidades aos 13 e decidido dedicar-se às artes plásticas a cem por cento aos 25 anos, Jorge Curval quer fazer muito mais. Não lhe bastam as cerca de quarenta mil obras que já produziu ao longo de quatro décadas de carreira.

Está, agora, empenhado na criação de um novo atelier, no Norte do país, que conta ficar pronto até ao final do ano e que é “semelhante ao conceito factory, como Andy Warhol tinha, mas com uma organização atual”. A ideia é que o espaço seja um “local permanente de exposição, em que as pessoas podem ver e adquirir as minhas obras, mas também um espaço onde possa ter três ou quatro jovens artistas saídos de cursos de Belas Artes a trabalhar comigo e a colaborar comigo, para fazermos peças em conjunto, e, ao mesmo tempo, ter um artista conceituado a produzir comigo”. Abrir horizontes a “uma nova geração, com um novo olhar e com uma experiência diferente da minha geração, complementar a minha experiência com a de outro artista que já tenha nome próprio e juntar a tudo isto uma organização atual, com internet, vídeo e inteligência artificial ao serviço da arte, para fazermos imagens mais fortes e arte mais emocional” é o desafio a que o pintor quer dar corpo.

Este projeto enquadra-se na ambição de internacionalização que Jorge Curval reconhece faltar-lhe. “Preciso de apostar na minha promoção lá fora, no mundo inteiro, em estratégias que permitam que o meu trabalho tenha visibilidade em qualquer parte do mundo, sem ficar limitado ao território em que estou situado”, afirma o artista. Igualmente a pensar na internacionalização, Jorge Curval ambiciona criar uma Fundação com o seu nome, em qualquer parte do Norte do país, “que possa funcionar como espaço de visita, aberto ao público todo o ano”, com obras oferecidas pelo próprio e que permita “dinamizar experiências como, por exemplo, uma universidade sénior incluída ou uma escola de artes associada ou aulas pontuais de pintura para os visitantes”. Nesse sentido, Curval gostava que algum autarca da região se interessasse pela ideia e o ajudasse a encontrar um espaço e uma forma de gestão do mesmo, para criar essa Fundação.

Assume estes desafios como se estivesse de frente para uma tela em branco: “O começo é sempre com coragem. Sei sempre como começar um trabalho, mas nunca sei, nem quero saber, como vai acabar. Porque esse desconhecimento dá-me mais liberdade e porque permite-me obter algo que não é repetível, algo que não me faça repetir”.

“Não quero ser apenas conhecido ou recordado como o Jorge Curval das festas fantásticas, mas também como o Jorge Curval da criação e do pensamento”

Por querer coisas novas, por “não lidar bem com a ideia do envelhecimento” e por se “assustar com a ideia de finitude e de doença”, condescende estar numa fase da vida em que, hoje, quer “fazer algo muito mais marcante, coisas que sei que nunca mais vou fazer”. Parece-lhe que “somos todos como o Salvador Dali, que queria viver eternamente, e quando temos a noção da finitude, começamos a dar mais valor à vida”. O que o move é essa extensão da própria vida, essa marca física e materializada em suportes orgânicos que quer deixar. Porque, como ele próprio diz, “não quero ser apenas conhecido ou recordado como o Jorge Curval das festas fantásticas, mas também como o Jorge Curval da criação e do pensamento”.

Com esse espírito presente, Curval equipara a existência à peça “O ciclo da vida” do artista britânico Damien Hirst, uma das obras que mais está presente na sua cabeça, uma das peças que mais desejou ver ao vivo e que o fez esperar numa fila, durante três horas, para a observar na Tate Modern, o Museu Nacional de Arte Moderna, em Londres. A peça, descreve o artista português, “tem uma cabeça de vaca a alimentar larvas que se transformam em moscas e tem uma lâmpada com luzes ultravioletas que podem matar as moscas ou deixá-las passar por uma passagem que Hirst designou como a Mão de Deus”.  Apesar de “esteticamente ser horrível, faz-nos questionar e pensar sobre a nossa própria vida, sobre o que é mais importante na nossa vida, duma forma que mistura a arte toda na qual me revejo: o modernismo, o conceptualismo e o minimalismo”.

É esse ciclo da vida que faz de Curval uma personalidade assumidamente provocadora, disruptiva e insubordinada, mas também um ser apaixonado e sensível. Define-se como “um justiceiro, um defensor da justiça”, sensibilizado com “os mais desprotegidos, que são os idosos e com a miséria em que muitos velhos vivem”.

É consciente desse ciclo da vida que Jorge Curval exibe nos seus vinte hectares de terreno com lagos e recantos criados propositadamente para os animais, quarenta patos, incluindo mandarins, cisnes e gansos, três galos, cinco cabritas anãs e uma cadela.

É o ciclo da vida que faz o artista eternizar declarações de amor no Jardim do Éden, nas fontes, nas esculturas e nas pedras em forma de íris que adornam o descampado que rodeia a sua casa.

É o ciclo da vida que tem estampado na frase escrita no portão de entrada no terreno da casa onde vive e trabalha e que diz “amo como quem ama o amor”.

Tags
Show More

Related Articles

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Close