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Bombeiros portugueses e refugiados ucranianos: Todos já em Portugal e a pensar nas crianças

Terminou sexta feira a viagem da caravana da Liga dos Bombeiros Portugueses, que foi à fronteira polaca doar material de segurança às corporações ucranianas e regressou com 102 refugiados à procura de proteção em Portugal. Foram quase 8 dias a rodar em viaturas que transportavam largas toneladas de material, percorrendo nos dois sentidos uns 7.000 quilómetros através de cinco países, sempre em condições de conforto (no mínimo) difíceis. Avarias e acidentes determinaram muitas vezes o ritmo da viagem, mas, no final, o que mais ficou na memória foram as crianças: as da Ucrânia, de postura mais recatada, pela mudança drástica a que assistiram nas suas vidas nas últimas três semanas; e as francesas, que, com a inocência resultante da segurança, exibiam sorrisos largos ao cederem as suas salas de aula como camaratas para dormida da comitiva.

– Texto e fotos da enviada especial Alexandra Couto –

Depois de uma noite no quartel dos bombeiros de Bautzen, na Alemanha, a caravana da Liga dos Bombeiros Portugueses chegou no dia 13 de março ao extremo leste da Polónia e, a cerca de 13 quilómetros da fronteira com a Ucrânia, descarregou nos armazéns da associação SOS Army cinco ambulâncias e várias toneladas de bens para hospitais e corporações ucranianos. Após horas de trabalho pesado a descarregar esse material, o sono foi pouco, mas retemperador, nas camaratas de uma escola próxima, e, logo pela manhã, ao aperceber-se de movimentações no local, uma senhora polaca esperava a única mulher do grupo com um saco cheio de maçãs e peras. Deve ter-lhe dito qualquer coisa como “distribua a fruta pelos seus colegas”, mas, sem a moradora falar Inglês nem os portugueses saberem Polaco, todos se ficaram por gestualizações rápidas de agradecimento – e pela efetiva repartição da prenda.

Nessa segunda-feira completou-se ainda a entrega de equipamentos de proteção individual destinados às corporações da Ucrânia, num trabalho coordenado pela bombeira ucraniana Alina Koslova a partir de um quartel polaco próximo da fronteira. Transportou-se também até aos laboratórios Neuca, em Pabianice, um carregamento de medicamentos e outras substâncias destinadas ao fabrico de fármacos para atender às vítimas do conflito russo-ucraniano. Em seguida recolheram-se em Cracóvia os 102 ucranianos e quatro animais de estimação que já estavam sinalizados para viver em Portugal, após o que a viagem de regresso começou por volta das 21h00, com motoristas de pesados e ligeiros a revezarem-se continuamente na condução.

Atravessada toda a Alemanha, a ideia era que terça-feira se pernoitasse com o grupo de refugiados no colégio francês Saint Joseph, em Aubiére, nas proximidades de Clermont-Ferrand, mas uma avaria no autocarro que os transportava impediu que bombeiros portugueses e famílias ucranianas se reunissem no mesmo local. À escola, já depois da meia-noite, chegariam apenas os bombeiros, após o que as elaboradas manobras que permitiram estacionar uns quantos camiões TIR na área do recreio infantil justificaram claramente a ceia que os esperava.

A equipa que recebeu o grupo, coordenada por Ana Flor-Mota e Maria Ferreira (ambas com ligações a Portugal), tinha preparado tudo em 24 horas: colchões e cobertores estavam já dispostos para viabilizar um sono rápido e profundo, um impressionante stock de comida permitia tanto refeições quentes como lanches para a viagem, donativos financeiros também ficaram à guarda da Câmara de Mafra e da paróquia de Ericeira e Carvoeira – entidades às quais competia o acolhimento dos refugiados em Portugal. E para que não falhasse nada, Maria Ferreira até ficou a dormir na escola, num colchão como o dos bombeiros, para garantir que lhes poderia responder a qualquer solicitação.

Foi precisamente por essa disponibilidade – de professores, funcionários e membros da paróquia local – que, no dia seguinte, quando finalmente o autocarro ficou pronto e se deslocou até Aubière, os bombeiros desanimaram face à informação de que o encontro entre franceses e ucranianos fora transferido do colégio Saint Joseph para outro local. A mudança para o salão La Ruche foi proposta pela Câmara de Beaumont e teve o consentimento da autarquia de Mafra e da paróquia da Ericeira, mas não agradou ao pessoal fardado. “As pessoas da escola estiveram aqui mais de 24 horas à espera do grupo, foram inexcedíveis e não mereciam isto”, disse um dos bombeiros. “Em Portugal ninguém faria esta desfeita à escola, até por causa das expectativas dos miúdos”, acrescentou outro.

Estas deceções diplomáticas terão passado despercebidas aos anfitriões do jantar, até porque, antes da refeição, o município de Beaumont ainda organizou uma cerimónia de boas-vindas aos ucranianos (na presença de jornalistas), enquanto professores e alunos aguardavam no colégio para servir o jantar ao grupo. Ao aperceberem-se da mudança de local, a desmoralização no Saint Joseph foi evidente, pelo que dois docentes do colégio foram com algumas crianças ao salão La Ruche e comunicaram a sua deceção a Ana Flor-Mota, que mostrou compreender as razões para essa frustração, mas argumentou que prioritário era evitar mais cansaço aos ucranianos, poupando-os a deslocações adicionais e a refeições num espaço exíguo.

A pacificação chegou pelas crianças: como os meninos franceses levaram para o La Ruche dezenas de desenhos assinados por si próprios e por outros alunos do colégio, tentaram distribuir essas criações pelas crianças da Ucrânia, embora algo inibidos pela ausência de um idioma comum. A tarefa foi, contudo, mais difícil do que se imaginaria. Reconfortados pela refeição à mesa após centenas de quilómetros num autocarro, os meninos ucranianos pouco pararam quietos e não percebiam bem porque é que outras crianças os olhavam com papéis na mão e o ar de quem pede autorização para se aproximar. Alguns desenhos foram aceites, é certo, mas sem grandes expressões de entusiasmo, para desconsolo visível das crianças do Saint Joseph.

Quem salvou a situação foi o grupo de bombeiros. Parando a refeição para cumprimentar as crianças francesas, os portugueses receberam os desenhos com ânimo, deixaram-se fotografar com essas obras em primeiro plano e ainda prescindiram dos bonés vermelhos das respetivas fardas para os oferecer aos meninos. Daí até os pequenos gauleses pedirem para ver a cabina dos camiões e segurar nos respetivos volantes, claro que não demorou muito. O pedido foi atendido quando os bombeiros regressaram ao colégio, mas a visita foi rápida porque havia que retomar a última etapa da viagem de regresso a Portugal.

Imprevistos? Desta vez não muitos. Para juntar às três avarias anteriores e a dois acidentes de viação, só faltava mesmo um pneu furado e foi isso o que aconteceu ao camião dos Bombeiros de Carnaxide na A23, quando estavam já no Fundão, em solo natal. Os colegas de Alenquer ficaram no local para os ajudar e, quando os quatro chegaram ao seu destino final, já os ucranianos recolhidos na Polónia tinham sido acomodados em camaratas dos Bombeiros Voluntários de Mafra e em salas da Santa Casa da Misericórdia local. Foi aí que passaram a noite e onde esta manhã receberam a delegada de saúde local e os técnicos do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, para formalização do seu pedido de proteção temporária e legalização da sua estadia em Portugal.

Sexta de manhã, quando as famílias chegadas da Ucrânia tinham concluído as devidas burocracias e já se encontravam na casa de parentes ou conhecidos que se disponibilizaram para as alojar nos próximos tempos, duas classes de fotografias circulavam nas redes sociais, nos perfis das dezenas de pessoas envolvidas da missão humanitária da Liga dos Bombeiros Portugueses. De um lado, meninos da Ucrânia, de ar cansado, sorriso ténue, a posar com peluches, algo desconfiados quanto a tanta oferta de gomas, rebuçados e batatas fritas. Do outro, crianças do colégio Saint Joseph a saltarem com expressões de riso rasgado, numa pose segura ampliada pelo boné vermelho dos bombeiros portugueses. Talvez todos sonhem com camiões… A carga de uns e outros é que não será a mesma ■

ALGUMAS FOTOS SOBRE A ÚLTIMA FASE DA MISSÃO “UM CAPACETE PARA OS BOMBEIROS DA UCRÂNIA”:


Fruta caseira oferecida pela moradora polaca

 


Entreajuda para reparar de improviso uma janela partida


Salas de aula transformadas em camaratas


Nada como uma ceia de sustento por volta das duas horas da manhã

 


Vista matinal do recreio parcialmente ocupado por camiões

 


Alguns professores do colégio. Da esquerda para a direita: Emilie  Villarino, Maria Ferreira, Marie Ange Alligier (diretora), Sebastien Barge e Renan Berthou


Um almoço quente para o grupo que aguardava a chegada do autocarro em reparação


Um torneio sem palavras entre um aluno da escola e um repórter de imagem


O jantar no salão La Ruche


Crianças francesas e ucranianas depois de as primeiras oferecerem desenhos às segundas


Voltar ao autocarro após uma paragem para lanche – Foto: DR


– Foto: DR


Uma das poucas famílias que sempre autorizou fotografias – Foto: DR


Alunos do colégio Saint Joseph a enviar cumprimentos aos bombeiros no dia seguinte ao da partida – Foto: DR


Um dos meninos que no dia seguinte foi para as aulas com o boné dos “pompiers” portugueses
Foto: DR


A chegada a Mafra durante a madrugada de sexta-feira – Foto: DR


Foto: DR

 

 

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2 Comments

  1. As imagens da guerra causam-me uma enorme e profunda tristeza. Fico de coração partido com a dimensão da tragédia. Fico de coração cheio ao ver estas imagens aqui publicadas que mostram sorrisos. Muitos. Poderá ser uma esperança.

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