Entrevistas
“O passado, ao contrário do que se diz, não é um país distante”
Armando Norte é licenciado em história, escritor, mas acima de tudo investigador. Chega-nos com uma obra intitulada “Os Intelectuais em Portugal na Idade Média”. Fez-nos um retrato da Idade Média, época em que surgiram novos pensamentos, indivíduos formidáveis que deixaram marcas no tempo. De Santo António a Gil Vicente. Descubra o que motiva o autor nesta viagem que conta com a chancela da Esfera dos livros.
Por: Andreia Gonçalves
Agência de Informação Norte – A investigação é um dos seus mares mais intensos, onde gosta de navegar, foi por isso que escolheu escrever sobre a Idade Média, neste livro?
Armando- Norte – Na verdade, a Idade Média constitui um interesse meu desde há muito. Acompanha-me desde a juventude. Tem a ver com a projeção na minha mente de um certo imaginário medieval que sempre me cativou profundamente, bebido em livros e em filmes. Mais tarde, com a licenciatura em História, esse entusiasmo juvenil amadureceu e aprofundou-se. Nesse particular, foi muito marcante para o meu percurso como aluno e, mais tarde, como investigador, o impacto de um professor que era, então, docente das aulas de História da Cultura na Idade Média, e que muito apreciei. Esse professor viria a ser o meu futuro orientador, quando avancei para a tese de doutoramento, que incidiu precisamente no tema dos letrados e da cultura letrada na Idade Média, a origem deste livro.
Em resumo, tenho andado grande parte da minha vida de investigador à procura de dar forma e consistência ao meu imaginário juvenil e a confrontar-me nesse encontro com inúmeros equívocos, outras tantas confirmações, mas perpetuamente maravilhado por um mundo, por um lado, tão diferente do nosso presente, e, por outro lado, tão idêntico a ele. Este livro é um resultado palpável dessa busca.
Por esta altura, surgiu uma nova categoria de indivíduos, que marca a nossa história para sempre. Qual destes que escolheu para abordar no seu livro, mais se identifica e porquê?
Poderá parecer uma trivialidade, mas com todos os letrados que selecionei como objetos de investigação (Santo António, Pedro Hispano, D. Duarte, Fernão Lopes e Gil Vicente) achei afinidades e fatores de identificação. A começar, desde logo, pelo gosto pela pesquisa e pelo trabalho intelectual, um denominador comum entre eles, que partilho de forma entusiástica. Contudo, como fiz questão de revelar na própria introdução ao livro, foi D. Duarte aquele que mais colheu a minha simpatia e a minha admiração. Talvez pelo mal de melancolia de que sofreu; ou pelo sentido do dever de que nunca abdicou; ou pelo seu gosto pelos livros — tudo espelhos em que me revejo.
O que mais o fascinou na escolha destes ilustres?
A premissa que esteve subjacente à escolha dos cinco letrados foi o facto de serem, cada um deles à sua maneira, um representante estimável das várias feições de intelectuais que se exprimiram em Portugal na Idade Média. Muito genericamente, os dois primeiros, Santo António e Pedro Hispano, prefiguram os intelectuais da primeira geração, com ligações à Igreja; enquanto, os três restantes, D. Duarte, Fernão Lopes e Gil Vicente, mais tardios, são a expressão visível de uma sensibilidade intelectual diferente, ligada sobretudo à cultura de corte.
A filosofia não poderia estar de fora deste seu trabalho. Quais são as linhas de pensamento que retira desta época para a atualidade?
Essa pergunta é muito interessante. O homem define-se como um ser pensante; é isso que o distingue fundamentalmente enquanto espécie de todas as outras. Por isso, confrontou-se, desde o início, com profundas inquietações sobre o sentido da vida e mostrou sempre um imenso amor pelo saber, que é o que significa literalmente a palavra filosofia em grego (filo = amor; sofia = sabedoria). Dessas preocupações e do desejo de fazer novas descobertas comungaram os homens medievais, tal como hoje o fazem muitos indivíduos que continuam a questionar o papel da humanidade no mundo e a insistir em testar os limites do saber conhecido. Algo que foi visto muitas vezes como um bem, noutras como uma espécie de maldição, dependendo das épocas e dos seus protagonistas.
Muito significativamente, as condenações relacionadas com o saber foram o tema de muitos mitos (como o mito grego de Prometeu, amaldiçoado por legar o conhecimento ao homem, na forma do fogo) e de lições religiosas (foi por morder um fruto proibido, a maçã, que era uma alegoria do conhecimento, que o homem foi expulso por Deus do Éden). Encarado como vício ou como virtude, o gosto pelo saber foi e continuará a ser uma parte inalienável da condição humana. É nisso que consiste a filosofia, tanto nos tempos medievais, como na era contemporânea.
O que é que as pessoas não sabem sobre Tomás de Aquino que devem descobrir neste seu livro? ( sem levantar todo o véu, claro).
Tomás de Aquino foi um homem do clero que viveu em pleno século XIII, ligado à ordem dos frades dominicanos, e que acabou canonizado pela Igreja Católica. Em vida foi um teólogo consagrado, que se destacou como um dos principais expoentes da escolástica. Deu aulas de teologia na universidade de Paris num momento em que esta conhecia uma época de grande perturbação e efervescência intelectual. Na universidade parisiense confrontavam-se duas teses. Uma, mais conservadora, era suportada pelos mestres e alunos da faculdade de teologia, defendendo o conhecimento fundado na tradição da Igreja, nomeadamente nos ensinamentos de Santo Agostinho, marcados pelo neo-platonismo. Por sua vez, a mais progressista tinha como partidários os mestres e alunos da faculdade de artes liberais, que procuravam reformar muitas das teorias e doutrinas em vigor, com base na redescoberta de um conjunto de obras do filósofo grego Aristóteles, que serviam para as impugnar. A rivalidade entre os dois partidos foi muito grande, ultrapassando as lutas ideológicas e evoluindo mesmo para conflitos sangrentos no interior da comunidade académica parisiense. Como professor, Tomás de Aquino, assistiu muito de perto às discussões em curso, que lhe suscitaram uma profunda reflexão. O resultado dessa reflexão foi a escrita de um tratado muito importante para a história da igreja, assim como para a história da literatura, a que chamou Suma Teológica. Nessa obra, Tomás de Aquino elaborou uma versão moderada do aristotelismo, em que procurou compatibilizar os difíceis caminhos da fé e da razão. Na prática, promoveu uma conciliação entre as duas concepções, devidamente cristianizadas, do neoplatonismo e do aristotelismo, segundo a premissa de que ambas eram vias indispensáveis para aceder ao conhecimento, e que, uma vez interligadas, proporcionariam uma melhor compreensão de Deus. Essa síntese evidencia bem a originalidade do seu pensamento.
Santo António e Gil Vicente. Como definir cada um deles numa frase.
Santo António foi um homem ligado ao saber, um doutor evangélico, que o povo escolheu adorar como santo e fazedor de milagres. Quanto a Gil Vicente, foi um autor que viveu numa determinada encruzilhada da história, em que o passado medieval se cruzava com o humanismo nascente, e que preferiu, como o testemunham as suas obras, o crepúsculo da medievalidade à alvorada dos novos tempos.
Há abordagem do confronto desta época entre a fé e a razão. Que leitura faz dessa discussão da idade média e dos dias de hoje?
Nas pesquisas filosóficas da Idade Média, as questões filosóficas centraram-se justamente, como já fiz referência antes, no confronto entre as dimensões da razão e da fé, o mesmo é dizer entre a filosofia e a teologia, nem sempre conciliáveis. Esse confronto mostra-se de uma grande modernidade, quando transposto para o mundo de hoje. Olhe-se, por exemplo, à guerra de civilizações entre blocos religiosos, ou, noutra direção, para a permanente controvérsia entre os avanços científicos e as questões religiosas. Tudo isso estava presente na Idade Média, nomeadamente nas cruzadas e na gradual tendência para a laicização do conhecimento.
Qual tem sido o feedback desta obra por parte dos leitores?
As respostas ao livro têm sido francamente positivas. Têm chegado até mim de vários quadrantes e por diversos meios, com origem em familiares, alunos, investigadores, professores, jornalistas e, até, em desconhecidos que se interessam por História e que se cruzaram acidentalmente com a obra. Alguns desses comentários serão naturalmente suspeitos, por terem origem em pessoas próximas, mas, em geral, há um grande consenso sobre a pertinência e o interesse do livro, o que me apraz registar. Assinalo em todo o caso algumas diferenças, que resultam dos gostos subjectivos de cada leitor. Há quem valorize o retrato feito dos tempos históricos, que corresponde à primeira parte da obra; ao passo que há quem tenha preferência pela segunda parte, construída em torno das ditas biografias de sábios do período. Há também quem faça considerações elogiosas relativamente ao relato feito de uma dessa figuras em particular, que lhe tenha agradado especialmente. No interior dessa grande diversidade de opiniões, há uma nota geral de entusiasmo, de interesse e de genuíno agrado. É essa a minha máxima aspiração enquanto autor, a de saber que o livro está a cumprir a trajectória para que foi concebido: chegar ao grande público e divulgar um passado histórico ainda mal conhecido.
“O passado, ao contrário do que se diz, não é um país distante.” Foi, ontem, e escreveu muito do que somos hoje. Concorda?
Sim, estou absolutamente de acordo. Continua ainda muito vulgarizada a ideia de que o conhecimento do passado é irrelevante, como se os homens de hoje não fossem o produto de tempos anteriores, das escolhas feitas por aqueles que nos antecederam. Ora, isso é um tremendo equívoco. Há que tomar, de uma vez por todas, a consciência de que a memória histórica deve ser preservada. Sob pena de a sociedade se tornar amnésica, esquecendo quem é e aquilo que a une como comunidade. A esse respeito, os homens medievais, na sua sabedoria, diziam, de si próprios, que não passavam de anões aos ombros de gigantes («nanos gigantum humeris insidentes»). Uma outra maneira de dizer que apenas conseguiam ver melhor e mais além do que os seus antecessores, não por serem maiores do que eles, mas por beneficiarem dos seus contributos. Uma metáfora que é uma bela lição de humildade, que urge reaprender.